13/02/2011

A Grande e a Pequena Guerra Santa

(por Julius Evola)

O Bhagavad-gitâ

(…) À formulação islâmica da doutrina heróica corresponde a exposta na já citada Bhagavad-gitâ, em que se encontram os mesmos significados num estado mais puro. E não deixa de ter interesse salientar que a doutrina da libertação através da acção pura, exposta neste texto, é declarada de origem «solar» e teria sido comunicada directamente pelo chefe de estirpe do presente ciclo não aos sacerdotes ou brâhmana, mas sim a dinastias de reis sagrados.

A piedade que impede o guerreiro Ariuna de descer ao campo de batalha contra os inimigos por reconhecer entre estes parentes e mestres seus, é qualificada no Bhagavad-gitâ de «cobardia indigna de um homem bem-nascido, ignominiosa, que afasta do céu». A promessa é a mesma: «Morto, ganharás o paraíso; vitorioso, possuirás a terra: por isso ergue-te resoluto para o combate». A orientação interior – a nyyah islâmica – capaz de transformar a «pequena guerra» numa «grande guerra santa», é declarada em termos bem claros: «Dedicando-me todas as obras – diz o deus Krshna – com o teu espírito fixado no estado supremo do Eu, livre de toda a ideia de possessão, livre da febre no espírito, combate.» É em termos igualmente claros que se fala da pureza desta acção, que tem de ser querida por si mesma: «Considerando como iguais o prazer e a dor, o lucro e a perda, a vitória e a derrota, prepara-te para a batalha: assim não terás qualquer culpa», ou seja: não te desviarás de maneira nenhuma da direcção sobrenatural ao realizares o teu dharma de guerreiro. A relação entre a guerra e a «via de Deus» é a mesma que se encontra presente na Bhagavad-gitâ, com uma acentuação do aspecto metafísico: o guerreiro, de certo modo, reproduz a transcendência da divindade.

O ensinamento que Krshna forneceu a Ariuna diz respeito acima de tudo à distinção entre o que como ser puro é imorredouro, e o que como elemento humano e naturalista tem somente uma aparência de existência: «Não há [possibilidade de] existência para o irreal ou [possibilidade de] não-existência para o real: os que sabem, apercebem-se da verdade respectiva de cada um destes dois termos… Tens de saber que é indestrutível o que ocupa tudo. Quem o considerar como matador e quem o considerar como o que é morto, são ambos ignorantes: ele não mata nem é morto. Não é morto quando o corpo é morto. Estes corpos do espírito eterno, indestrutível e ilimitado, são perecíveis: por isso ergue-te e combate!»

À consciência da irrealidade do que se pode perder ou fazer perder como vida caduca e corpo mortal – consciência a que corresponde a definição islâmica da existência terrena como jogo e divertimento – associa-se seguidamente o conhecimento do aspecto divino segundo o qual aquele é a força absoluta, perante a qual surge toda a existência condicionada como negação: uma força que portanto se desnuda, por assim dizer, e resplandece numa temível teofania precisamente na destruição, no acto que «nega a negação», no turbilhão que arrasta consigo toda a vida finita para a aniquilar – ou para a fazer ressurgir lá no alto, trans-humanizada.

Assim, para libertar Ariuna da dúvida e do «mole vínculo da alma», o Deus não só declara: «Nos fortes eu sou a força isenta de desejo e de paixão – sou o clarão do fogo, sou a vida em todas as criaturas, e a austeridade nos ascetas. Sou o intelecto dos sábios e a glória dos vitoriosos» – como também por fim, abandonando todo o aspecto pessoal, se manifesta na «terrível e maravilhosa forma que faz tremer os três mundos», «alta como os céus, irradiante, multicor, com uma boca escancarada e grandes olhos flamejantes».

Os seres finitos – como lâmpadas debaixo de uma luz demasiado intensa, como circuitos percorridos por um potencial demasiado elevado – cedem, desfazem-se, morrem, porque dentro deles arde uma potência que transcende a sua forma, que pretende algo infinitamente mais vasto que tudo o que eles como indivíduos podem pretender. Por isso os seres finitos «tornam-se», transmutando-se e passando do manifesto ao não manifesto, do corpóreo ao incorpóreo. É nesta base que se define a força destinada a produzir a realização heróica. Os valores invertem-se: a morte torna-se testemunho de vida, o poder destruidor do tempo revela a indomável natureza encerrada no que está submetido ao tempo e à morte. Daí o sentido das seguintes palavras de Ariuna no momento em que tem a visão da divindade como pura transcendência: «Tal como as borboletas se precipitam com uma velocidade crescente na chama ardente para encontrarem a sua destruição, assim os vivos se precipitam em velocidade crescente nas Tuas bocas para encontrarem aí a sua destruição. Tal como os inúmeros cursos de água só correm directamente para o mar, igualmente estes heróis do mundo mortal entram nas Tuas bocas ardentes,» E Krshna. «Eu sou o templo plenamente manifestado, destruidor dos mundos, ocupado a dissolver os mundos. Mesmo sem a tua intervenção, estes guerreiros alinhados uns em frente dos outros em fileiras opostas cessarão todos de viver. Ergue-te pois, e conquista a glória: vence os inimigos e goza de um reino próspero. Todos estes guerreiros, na realidade foram mortos por mim. Tu, sê o instrumento. Combate pois sem temor, e os teus inimigos hás-de vencer na batalha.»

Por esta via, representa-se a identificação da guerra com a «via de Deus». O guerreiro evoca em si a força transcendente de destruição, assume-a, transfigura-se nela e liberta-se, rompendo o vínculo humano, A vida – é como um arco; a alma – como um dardo; o alvo a trespassar – o Espírito Supremo: juntar-se a ele, como a seta atirada se fixa no alvo – diz-se noutro texto da mesma tradição: É esta a justificação metafísica da guerra, o assumir da «pequena guerra» em «grande guerra santa». Isto permite também compreender o sentido da tradição relativa à transformação durante a batalha, de um guerreiro ou de um rei num deus. Ramsés Merianum no campo de batalha transformou-se, de acordo com a tradição, no Deus Amon, dizendo: «Eu sou como Baal na sua hora» – e os inimigos, reconhecendo-o naquela amálgama gritavam: «Não é um homem, é Sathku, o Grande Guerreiro, é a encarnação de Baal!» Baal corresponde aqui a Çiva e ao Indra védico, assim como ao paleogermânico e solar Tiuz-Tyr, que tem por sinal a espada, mas que também está relacionado com a runa e ideograma da ressurreição («homem com os braços levantados») e com o já referido Odin-Wotan, deus das batalhas e da vitória. Por outro lado, não se deve descurar o facto de quer Indra quer Wotan serem igualmente concebidos como deuses da ordem (Indra é chamado «moderador das correntes» e como deus do dia e do céu luminoso tem também características olímpicas), que regem o curso do mundo. Assim voltamos a encontrar o tema geral de uma guerra que se justifica como um reflexo da guerra transcendente da «forma» contra o caos e as forças da natureza inferior que a este se encontram associadas. (…)