18/08/2012

Maoísmo e Tradição

por Claudio Mutti

Quaderni del Veltro, Bolonha, 1973


"O estudo ideológico deve estar baseado uns 99% nas obras do Grande Timoneiro Mao Tsé-Tung, pois nelas se superam, em qualidade, as opiniões de Marx, Engels, Lênin e Stálin". - Lin Piao

Derivações Taoístas da Teoria das Contradições

Afirma Mao Tsé-Tung: "A lei das contradições inerentes às coisas, quer dizer, a lei da unidade dos opostos, é a lei fundamental da natureza da sociedade e, por extensão, do pensamento".

Mao admite, junto com Marx, que a contradição é o motor universal de todo desenvolvimento. Porém o pensamento de Mao difere do marxista no momento em que, se colocando sob a tutela da tradição taoísta, delineia o caráter complementário dos contrários: "Sem o alto não há o baixo; sem o baixo não há o alto".

Segundo os ensinamentos taoístas, yin e yang são "princípios opostos e, ao mesmo tempo, complementares e inseparáveis, que possuem múltiplas valências: são o eterno masculino e o eterno feminino, o ativo e o passivo, o Céu (em sentido não-estrito) e a Terra, o luminoso e o escuro, o criativo e o receptivo, e assim eternamente". O yin e o yang são "duas categorias simbólicas dos opostos eternos, ainda que não sejam opostos em sentido estrito, senão que são complementares um com o outro, são necessários um ao outro, um não poderia existir sem o outro".

É o princípio da complementariedade, presente nos dois princípios da tradição extremo-oriental, o que encontramos no centro da teoria maoísta da contradição, a qual contempla os contrários em sua interdependência: "Assim ocorre com todos os opostos; em determinadas condições eles são opostos entre si, em outras estão reciprocamente conectados: se complementam, são permeáveis reciprocamente, são interdependentes; é a isso que chamamos identidade". Taoísticamente, "o ser e o não-ser se sucedem, adiante e atrás se antepõem, acima e abaixo se complementam, possível e impossível são diferenciações complementares", etc. No taoísmo, a ação sólida dos contrários dá lugar a modificações que "agora se completam, agora se trespassam uma a outra".

A interpretação das contradições dialéticas operada no maoísmo, se conecta a nosso parecer com a tradição extremo-oriental e propõe uma reivindicação dos ensinamentos taoístas revestindo-as de uma terminologia marxista-leninista.

Aspecto Solar da Nova Ordem Maoísta

Em "Para aprofundar na grande revolução cultural proletária", Mao Tsé-Tung escreve: "O desenvolvimento de todas as coisas depende do Sol e o fazer a evolução depende do pensamento de Mao".

Entendemos que na presente frase se expressa a noção tradicional que identifica o Chefe com o Sol. Assim é como o Imperador da China devia dar uma circunvalação ao "Templo da Luz" no sentido do deslocamento aparente do Sol para um observador que olhasse para o sul, detendo-se doze vezes, nas doze estações simbólicas que correspondem aos doze meses; "Desse modo se identificava com os "doze sóis", que são os doze "âditya" da tradição hindu, e inclusive os "doze frutos da Árvore da Vida" no simbolismo apocalíptico. Mao herdou dos imperadores essa imagem analógica, imagem que vem continuamente posta em evidência nos cantos da revolução chinesa:

"O Oriente é vermelho, o Sol se alça,
Sobre a terra da China surge Mao Tsé-Tung"

***

"O Partido Comunista é como o Sol;
Por onde vai lançando seus raios tudo se ilumina.
Para que os viventes cresçam necessitam do Sol;
Para fazer a revolução necessitamos de Mao".

***

"O pensamento de Mao Tsé-Tung é um Sol que nos indica o Oriente.
Para navegar em alto-mar necessitamos do Grande Timoneiro.
Respeitai e amai ao Presidente Mao, o grande educador, o grande guia.
Sol do coração, Sol vermelho do coração do povo revolucionário.
Viva o Presidente Mao!
Desde a montanha de ouro de Pequim seus raios iluminam o planeta.
Este Sol de ouro é o Presidente Mao".

A característica solar que insistentemente vem atribuída ao rol de Mao Tsé-Tung induz a pensar que o maoísmo é o parto contemporâneo da tradição imperial chinesa.

Voluntarismo

O maoísmo oferece uma reinterpretação das forças agentes na história. Mao reafirma a importância das idéias no desenvolvimento histórico: "As idéias justas são as próprias da vanguarda do povo, pelas quais eles penetram nas massas, são uma força material capaz de transformar a sociedade a o mundo".

Enquanto na análise marxista o rol atribuído às forças materiais é preponderante, o pensamento de Mao repropõe o homem como fator decisivo: "é suficiente que existam homens, para cumprir não importa que fim...a Revolução pode mudar tudo". Daí a formulação das quatro prioridades: do homem sobre o fato material, do trabalho político sobre as demais atividades, da doutrina sobre o trabalho político, das idéias vivas sobre as idéias dos literatos. Nos encontramos diante da imagem de um idealismo voluntarista, onde está excluído todo determinismo de caráter laico ou marxista. O maoísmo coloca o homem em seu justo lugar: sujeito da história, e não objeto de uma História supersticiosamente finalista.

Este idealismo voluntarista está na base da revolução cultural: "A revolução cultural tem por objetivo a revolucionarização do pensamento do homem". É o homem o fator decisivo, não a economia: não é suficiente insistir sobre essa, há que atuar sobre aquele. De igual forma, Codreanu propunha a "reforma do homem": "O país vai para a ruína por falta de homens, não por falta de programas. Essa é nossa convicção. Não devemos criar mais programas, senão mais homens, homens novos". Porém a analogia entre as doutrinas de Codreanu e Mao se verá mais evidente quando observemos a importância que reveste o camponês na nova ordem maoísta.

O campesinato

A importância do campesinato e a antítese entre campo e cidade são elementos centrais na concepção maoísta do Estado, elementos que na Europa constituíram os fundamentos das teorias "rurais" de Oswald Spengler, Walter Darré, Karl Dyrssen, Ferenc Szálasi, etc., nos quais o "Bauertum" fiel à terra era visto como a fonte da força mais sadia do sangue e do "Volk". A concepção campesina de Mao e Lin Piao conhece, em termos análogos, a contraposição entre o burguês, o "novo nômade", o "homem infecundo" - protagonista da "Zivilisation", fase terminal, crepuscular de cada ciclo - e a figura anti-democrática do campesino, "princípio e fonte inesgotável do sangue que cria a história mundial".

Na nova ordem maoísta se observam de novo as heréticas profecias que viram no bolchevismo o regime escolhido dos soldados-camponeses, com o qual a Alemanha, retornada a suas tradições socialistas e campesinas, pôde ter feito frente comum contra o "Ocidente" mercantilista.

Escreve Lin Piao: "A guerra de resistência contra o Japão foi essencialmente uma guerra revolucionária dos camponeses guiados por nosso Partido...Tomar posições entre os camponeses, criar as bases rurais e se servir das campanhas para posteriormente atacar as cidades: este foi o caminho que conduziu a Revolução Chinesa à vitória".

A essa teoria da criação das bases revolucionárias nas zonas rurais e sua aproximação progressiva às cidades atribui Lin Piao um valor universal: "Ganharemos todo o globo terrestre desse modo. Se a América do Norte e a Europa Ocidental podem ser consideradas como "a cidade", Ásia, África e América Latina representariam suas "zonas rurais". Depois da Segunda Guerra Mundial, o movimento revolucionário do proletariado nos países capitalistas da América do Norte e da Europa, por diversas razões, perdeu o rumo, enquanto que os movimentos revolucionários dos povos da Ásia, África e América Latina conheceram um vigoroso desenvolvimento. Em certo sentido, a revolução do mundo contemporâneo é um cerco das cidades pelos campos".

Ferenc Szálasi, o chefe da Cruz Flechada Hungarista, invocava insurreição anti-plutocrática das nações de economia agrária contra a potência industrial da Europa e da América do Norte.

Nessa "distância aristocrática e luta existencial contra a burguesia cidadã" reside a oposição entre a sociedade baseada na fidelidade à terra dos ancestrais e a civilização cosmopolita, entre o sentido da estirpe e a bastardização democrática. Os intelectuais burgueses contemplam com horror essa realidade: "É possível que essa adoração delirante pelo chefe seja um novo desenvolvimento do racismo, que até agora não atacou aos demais povos asiáticos". "Uma nova muralha se está construindo na China, mais alta e inexpugnável que a anterior, que consiste em separar dos chineses a todos os estrangeiros presentes no território, de isolá-los. Ninguém pode formalizar uma amizade com os chineses, sejam europeus, africanos ou asiáticos".

A Guerra

"A guerra tempera o povo e permite acelerar a marcha da história". Essa frase de Lin Piao, que pode resumir a ética espartana instaurada na China maoísta, tem escandalizado todas as consciências pacifistas, que perceberam em tal afirmação um eco da exaltação da guerra que foi expressada na afirmação provocadora de Marinetti: "higiene do mundo".

Os gazetilheiros da burguesia manifestaram seu termo diante da visão maoísta da guerra: "Entre os símbolos da Guarda Vermelha revolucionária, junto à foice e ao martelo, se acrescentou um elemento novo e marxistamente blasfemo: o fuzil. Os fuzis dizem mais de Mao do que qualquer de seus exegetas. Karl Marx queria a paz, Mao Tsé-Tung quer a guerra; Karl Marx predicava a paz como fim da luta de classes, Mao Tsé-Tung proclama a eternidade da guerra popular..."

O heroísmo revolucionário ocupa um capítulo especial do "Livro Vermelho": nele se exaltam as virtudes guerreiras, a coragem, o sacrifício e o espírito de luta: "Um exército assim sempre segue adiante, decidido a vencer e a não se submeter ao inimigo. Ainda nas condições mais difíceis continuará lutando até o último homem". "Desenvolveremos continuamente nosso estilo de luta - coragem na batalha, nenhum temor perante o inimigo, nenhum temor perante a fadiga e uma luta contínua, um empenho em lutar sucessivamente em um intervalo de tempo breve e sem descanso".

"Milhares e milhares de mártires sacrificaram heroicamente suas vidas em interesse do povo. Alçamos, avançamos sobre a estrada enrubrecida por seu sangue!". O maoísmo tributa um reconhecimento precioso aos valores heróicos e contrapõe ao pacifismo uma concepção guerreira da vida, com a espiritualidade, os valores e a ética que são característicos de tal concepção. Essa concepção não deixa espaço para o individualismo, senão que predica aquela impessoalidade ativa que, em um clima livr de sugestões subjetivas, dá lugar ao sacrifício heróico, que é por definição desindividualizado, anônimo.

Frente à sociedade do mercador que exalta somente as "virtudes cívicas", que "identifica os valores materiais com os valores em si e cujo ideal de vida é a vida segura e confortável do trabalho, a produção, o esporte, o cinema e a sensualidade", o maoísmo propõe como alternativa um tipo de sociedade cujo primeiro posto está ocupado pelo guerreiro e pelo herói.

Porém não há que pensar que o marxismo, propondo uma moral militar de nível superior à moral burguesa, não tome precauções diante do militarismo: "O partido deve guiar o fuzil, o fuzil nunca deve guir o partido". O elemento militar e, em geral, guerreiro, se situa na esfera dos meios, não da dos fins: na ordem maoísta se deve subordinar ao princípio político, como no Estado platônico o elemento volitivo e a casta guerreira se subordinam ao elemento intelectivo e à elite dos sábios-iniciados.

A Arte

"Nossa literatura e nossa arte estão a serviço da grande massa do povo de trabalhadores, camponeses e soldados; é criada pelos trabalhadores, camponeses e soldados e está a serviço dos trabalhadores, camponeses e soldados".

Quatro anos mais tarde o stalinismo formula em termos análogos sua teoria da arte: "Convém à literatura auxiliar adequadamente o Estado a elevar a juventude, responder a seus problemas, educar às novas gerações para que sejam valorosas, a crer em sua causa, a se mostrarem intrépidas superando os obstáculos e barreiras..."

Essa verdade relativa da arte é similar na concepção política de Platão: "O totalitarismo platônico (...) nasce da consciência de que a velha classe dirigente estava morte e a nova não havia todavia nascido. Visto desde essa perspectiva, o totalitarismo platônico apresenta coincidências históricas relevantes com o totalitarismo moderno, que quer substituir às velhas elites políticas deslocadas pelas revoluções liberais".

Contra as mistificantes teorias burguesas sobre a arte, Mao afirma que "não existe, em realidade, uma arte pela arte, uma arte à margem das classes, uma arte que se desenvolva fora da política ou independentemente dela"; a arte na China deve ser uma arte popular. Platonicamente, Mao divulga o que ele chama de uma arte "liberada", ao tempo que resgata modelos de poesia tradicional. Mao Tsé-Tung, poeta ele mesmo como os velhos imperadores Han, Leang, Tang e Wei, conhecia o exercício das formas tradicionais da poesia, às quais se atém, dotanod-as de elegância, força e aristocracia.

A Medicina

No campo da medicina, o maoísmo apresenta uma alternativa tradicional à pseudo-ciência que veio a predominar no mundo moderno. A acupuntura foi praticada na China desde tempos antiquíssimos, e o Ocidente capitalista se vê obrigado a admitir que contradiz a idéia de "progresso": "Depois da guerra do ópio, em 1849, entre a decadência geral do país e a servidão cada vez mais acentuada dos imperadores Ching aos agressores imperialistas, a acupuntura veio a ocupar uma segunda ordem, e a situação veio a piorar ainda mais sob o governo reacionário do Kuomitang, que exerceu uma verdadeira discriminação contra essa terapia tradicional".

A nova ordem de Mao Tsé-Tung significou, no campo científico, uma redescoberta da medicina tradicional. "Desde a fundação da nova China, o Partido e o Estado tomaram várias medidas para desenvolver as terapias tradicionais, assim se fundaram vários centros de investigação em Pequim e nas grandes cidades, assim como se institucionalizaram os departamentos de acupuntura na quase totalidade dos hospitais". O pressuposto básico da acupuntura, como o de toda a medicina tradicional chinesa, é a doutrina tradicional de que a enfermidade deriva da ruptura do equilíbrio que mantém em tensão ideal o yang (masculino, ativo) e o yin (feminino, passivo). A medicina chinesa quer chegar ao nível das causas, ao contrário da medicina profana, que se aplica ao nível dos efeitos e que se pode descrever, em suma, como sintomática.

"Porém existe outro ponto de vista que é necessário tomar em consideração: a medicina chinesa, como todas as ciências tradicionais, tem em si os elementos simbólicos que lhe permitem ser exercitada no quadro da filosofia taoísta como verdadeiramente cognoscitivos, de servir como base adequada para a realização pessoal. Assim como perante a enfermidade o médico chinês tentará reestabeleer o equilíbrio relativo para a saúde, assim lhe servirá ao paciente como chave simbólica para sua realização como Tchenn-jen, como Homem verdadeiro, que é o ponto de onde parte todo o processo de conhecimento que conduz aos estados superiores do ser e que culmina na identidade com o Tao, quer dizer, na condição de Cheun-jen ou Homem Transcendente.

À hora de construir uma alternativa para a pseudo-ciência do mundo moderno, a resposta da ciência tradicional auspiciada pelo maoísmo põe as condições favoráveis para a realização do aspecto iniciático inscrito nas artes e nas profissões. No caso da medicina, a acupuntura reivindicada pela revolução maoísta, põe em seu lugar as bases do ditado tradicional: "Cura te ipsum".