30/07/2016

Alexander Yanov - O "Nacionalismo Esclarecido" de Lev Gumilev

por Alexander Yanov



Por que Gumilev?

Lev Gumilev é um nome respeitado na Rússia. Ele é respeitado por "ocidentalistas", dos quais ele não gostava, por assim dizer, bem como por "patriotas". Eis o que o "ocidentalista" Helium Prokhorov escreveu com admiração sobre ele no Literary Newspaper: "Deus deu a ele uma oportunidade de explicar sua teoria por si mesmo. E ela enfeitiçou, levando o país inteiro a pensar". Andrei Pisarev, da publicação "patriótica" Our Contemporary, não era menos reverente em sua conversa com o mestre: "Hoje você representa a maior escola histórica na Rússia".

É possível que o papel que Gumilev desempenhará na consciência pública russa após sua morte será mais significativo que o desempenhado durante sua vida? Sergei Glazyev certamente pensa assim. O assessor do presidente da Federação Russia e chefe não-oficial dos "unificadores" do Império Russo do clube Izborsky proclamou em 2013 que Gumilev era um dos "maiores pensadores russos" e o fundador do que ele chama de "integração" do espaço eurasiano.

Qualquer seja o seu legado, o heroi de nossa história, o filho da grande Anna Akhmatova e do famoso poeta da era de prata Nikolai Gumilev (que foi fuzilado pelos bolcheviques durante a Guerra Civil), o homem que passou muitos anos nos campos de Stálin e que, após sua libertação, conseguiu um Ph.D. em história e geografia e publicou nove livros que desafiavam Max Weber e Arnold Toynbee, oferecendo sua própria explicação dos mistérios da história mundial, foi em sua própria época sem dúvida um dos representantes mais talentosos e eruditos da maioria silenciosa da intelligentsia soviética.

O que nós podemos dizer sobre a camada social da qual Gumilev veio? Essas pessoas não estavam em guerra com o regime, mas elas só eram leais a ele em aparência. "Nem paz, nem guerra", este se tornou seu lema após as negociações de Trotsky em Brest em 1918. No mínimo, isso lhes permitiria manter sua dignidade em um regime pós-totalitário. Ou assim eles pensavam.

Porém, eles pagariam por isso. Enterrados sob os rochedos da censura onipresente, eles foram separados da cultura mundial e forçados a criar seu próprio mundo isolado e silencioso, no qual ideias nasciam, envelheciam e morriam, sem jamais serem realizadas, e onde hipóteses eram proclamadas, mas permaneciam sem serem testadas. Por toda sua vida eles guardaram em si mesmos uma chava tremeluzente de "liberdade secreta", mas eles ficaram tão acostumados com a linguagem de Esopo que ela gradativamente se tornou a sua própria. Como resultado, eles adentraram no mundo da sociedade pós-soviética com cicatrizes permanentes. Lev Gumilev partilhava com eles de todos os paradoxos de sua existência e pensar nas catacumbas.

Ciência Patriótica

Por toda sua vida, Gumilev tentou ficar o mais longe possível da política. Ele não estava procurando se digladiar com a censura, e a cada oportunidade ele jurava fidelidade ao "materialismo dialético". Ademais, não temos a menor razão para duvidar de que sua hipótese monumental explicando a história da humanidade era marxista. Aconteceu até de ele culpar seus adversários de se afastarem do "materialismo histórico". Marx, Gumilev dizia, em suas primeiras obras, havia previsto a emergência de uma ciência fundamentalmente nova do mundo, sintetizando todos os velhos ensinamentos sobre a natureza e o homem. Na década de 80, Gumilev estaca convicto de que a humanidade, através de sua pessoa, estava no limiar dessa nova ciência marxista. Em 1992, ele morreu acreditando ter criado essa ciência.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo, ele enfatizava sua proximidade com os eurasianistas, os mais ferozes adversários do marxismo no pensamento político russo do século XX: "Eu tenho sido chamado de eurasianista e eu não rejeito isso. Eu concordo com as principais conclusões dos eurasianistas". E ele não tinha medo da orientação anti-ocidental dos eurasianistas, apesar de isso os afastar de suas raízes nacional-liberais da década de 20 e os levar a degenerarem em uma seita reacionária de emigrados.

A evolução do conceito eurasianista não foi singular, naturalmente: todos os movimentos intelectuais russos anti-ocidentais, mesmo que começassem liberais, sempre tomavam a mesma rota de degradação. Em minha trilogia, eu descrevi o destino trágico dos eslavófilos. A única diferença é que sua "ideia russa" precisou de três gerações para completar essa metamorfose fatídica, enquanto os eurasianistas lidaram com ela por apenas duas décadas. Somos deixados pensando sobre como Gumilev reconciliou em sua mente sua proximidade com os eurasianistas e sua firme lealdade ao marxismo-leninismo.

Não se deve deixar de dizer, porém, que essa fantástica partição, a habilidade de servir (Gumilev considerava sua obra como um serviço público) sob os estandartes de duas escolas de pensamento opostas, o separava radicalmente da maioria silenciosa da qual ele veio e que era profundamente alheia tanto ao marxismo quanto ao conceito eurasianista. Essa não era a única coisa que o separava deles, porém.

Gumilev insistia que sua teoria era rigorosamente científica e tentou justificá-la com tudo que estivesse disponível para ele. Era como se cada página de seus livros estivesse dizendo, "Eu sou um cientista, e a política - oficial ou de oposição, ocidentalizadora ou 'patriótica' - não tem nada a ver com o espírito e propósito de minha obra". Ao mesmo tempo, lidando com os ataques da direita, ele foi compelido mais de uma vez a provar o impecável patriotismo de sua ciência. Novamente, essa é uma estranha dicotomia.

Por exemplo, em relação ao conceito comum na historiografia russa do "jugo mongol" dos séculos XIII ao XV, cuja existência Gumilev negava, ele rapidamente descartou os argumentos dos historiadores liberais: "Quanto aos ocidentalizadores, eu não quero discutir com intelectuais ignorantes que não aprenderam qualquer história ou geografia" (apesar do fato de que entre estes "intelectuais ignorantes" estivessem todos os principais historiadores russos". Ele ficava perturbado com o fato de que historiadores "patrióticos" reconhecessem o conceito de um jugo mongol. Ele pensava nisso como "verdadeiramente bizarro" e imaginava "Eu não consigo entender o porquê de patriotas amarem o mito do 'jugo', que foi inventado por alemães e franceses. Não está clara como que eles ousam dizer que sua interpretação é patriótica".

Parece que o termo "interpretação patriótica" de problemas científicos não era agradável aos ouvidos de cientistas. Se é que há algo como um "nacionalismo esclarecido", este é ele.

As Questões de Gumilev

A nova geração, que à luz da glasnost foi introduzida a batalhas na imprensa, começou desafiando a maioria silenciosa. Em uma invectiva impiedosa, Nicholai Klimontovich escreveu, "Nós somos acometidos pela questão fatídica: havia uma 'liberdade secreta', havia algo a mostrar, essa mina de ouro não se transformaria em pó e cinzas sob a luz do dia?" Como os outros, eu não sei, mas Lev Gumilev pegaria com dignidade a luva jogada ao chão pela geração mais jovem. Ele havia algo para provar ao mundo. Seu ousado assalto aos mistérios do mundo foi seu templo, construído na escuridão reacionária, e como vemos, continuando a atrair os fieis por meio da luz do dia. Os quebra-cabeças que ele tentava montar eram realmente imensos.

Como explicar, por exemplo, por que um pequeno número de selvagens nômades mongois subitamente irromperam no palco da história no século XIII e correram para conquistar o mundo, destruindo no caminho culturas ricas e civilizadas na China, Ásia Central, Oriente Médio e Europa Oriental? E o fato de que após dois séculos eles abandonaram o palco silenciosamente, como se eles nunca tivessem existido? E os outros nômades que emergiram tão subitamente quanto do deserto árabe e se tornaram os mestres de metade do mundo e os árbitros do destino das culturas mais prósperas na história? Sua ascensão surpreendente não terminou do mesmo jeito? E os hunos que vieram do nada e se fragmentaram de volta ao nada?

Por que todos esses meteoros históricos se incendiaram e esgotaram? Incontáveis historiadores e filósofos tentaram por séculos responder a essas perguntas. Mas não há respostas universalmente aceitas ainda. E Gumilev, confiando em sua assombrosa erudição, oferece respostas completamente originais. Não merece respeito a sua audácia, o escopo dessa empreitada, abarcando 22 séculos (começando com o século VIII a.C.)?

Hipótese

Audácia não é suficiente para uma tarefa nessa escala, porém. Como qualquer cientista sabe, para se acreditar em uma hipótese, deve haver um jeito de verificá-la. Ela deve ser falseável em linguagem acadêmica. Ela deve ser logicamente consistente e universal, i.e., explicando todos os fatos na área afetada por ela, não apenas aqueles preferidos pelo autor. E ela deve funcionar sempre, não só quando o autor acredita precisar dela. Com isso em mente, vamos dar uma olhada nas hipóteses de Gumilev.

Ele começa com uma compreensão comum do invólucro da Terra, parte do qual, junto à litosfera, hidrosfera e atmosfera, é a biosfera. Até aqui nenhuma novidade. O termo "biosfera" se refere a um conjunto de organismos vivos que foi introduzida no século XIX pelo geólogo austríaco Eduard Suess. A hipótese de que a biosfera pode afetar processos que se dão no planeta (por exemplo, como sabemos, o aquecimento global) foi proposta pelo acadêmico Vladimir Vernadsky em 1926.

A novidade começou quando Gumilev conectou dois em uma série de fenômenos desconectados, o geoquímico com o civilizacional, o natural com o histórico. Era, na verdade, o que ele queria dizer ao falar sobre a ciência marxista universal. Verdade, mas para isso ele precisava de uma pequena suposição (um crítico antipático a chamaria de distorção): sob a caneta de Gumilev, a hipótese de Varnadsky subitamente se transforma em energia bioquímica. Dessa metamorfose, a inocente biosfera de Suess subitamente vem à vida, se transformado em um enorme gerador de "energia bioquímica redundante", em um tipo de vulcão celestial, de tempos em tempos cuspindo rios de lava com a energia invisível da terra (uma energia que Gumilev chamou de "passionaridade").

Essas erupções arbitrárias e imprevisíveis da biosfera criam, segundo Gumilev, novas nações ("grupos étnicos") e civilizações ("super etnias"). E quando a passionaridade as abandona, elas resfriam, e morrem. Eis uma solução para a ascensão e queda de meteoros históricos. O que acontece aos grupos étnicos entre nascimento e morte? Aproximadamente a mesma coisa que acontece com seres humanos. Eles se erguem ("a consolidação do sistema"), queda na agitação juvenil ("a fase de superaquecimento energético"), crescem, e, é claro, envelhecem ("a fase do colapso"), então eles se aposentam ("a fase inercial"), e finalmente, eles chegam ao momento da morte ("a fase de ofuscação"). Tudo isso Gumilev chama de "etnogênese".

É assim que se passa: pessoas vivem em paz e quietude, sem incomodar ninguém, e então subitamente elas são atingidas por uma "explosão de etnogênese", e elas abandonam a sociedade e se tornam um "fenômeno da natureza". E desse momento em diante, "valores morais não se aplicam a elas, tal como com fenômenos da natureza". E nada mais depende do "grupo étnico". Nos 1200-1500 anos seguintes (porque a etnogênese dura tanto assim, com aproximadamente trezentos anos para cada fase), o grupo é um prisioneiro de sua "passionaridade". A partir de então, quaisquer mudanças pelas quais ele passa só podem estar ligadas a questões etárias.

Considere por exemplo, a Europa no século XVI: ocorre a Reforma, a burguesia nasce, a Idade Moderna tem início. Por que? Muitos tentaram explicá-lo. A perspectiva de Max Weber preponderou, ligando as origens da burguesia ao protestantismo. Não é nada do tipo, diz Gumilev. Essa é uma questão etária. É uma simples questão de que na Europa houve uma mudança da "fase de colapso" à "fase inercial". E o que é a "fase inercial"? Um declínio, uma perda de vitalidade, um perecimento gradual: "A imagem desse declínio é enganosa. Ela traja uma máscara de bem estar, que parece eterna para os seus contemporâneos. Mas este não passa de um engano consolador, como se torna aparente assim que haja uma subsequente e, dessa vez, fatal queda".

Ele está, como o leitor compreende, falando da "super etnia" europeia. Três séculos após entrar na "fase inercial", ela desabou em agonia e depois se transformou em um morto-vivo. A Rússia é outra questão. Ela é muito mais jovem (por cinco séculos, segundo estimativas de Gumilev) do que a Europa; ela ainda tem uma longa vida. Mas ela também é, certamente, prisioneira de sua idade. Isso explica o que ocorre a ela. Outros ficam confusos com a origem, por exemplo, da perestroika. Para Gumilev não há segredo aqui; é uma questão etária: "Nós estamos no fim da 'fase de colapso' (se preferimos, no clímax)."

A tentativa de Arnold Toynbee de oferecer algumas razões históricas gerais para o desaparecimento das civilizações antigas (ele as fornece em seus doze volumes de Ciência da História) parece frívola para Gumilev: "Toynbee só consegue comprometer o frutífero conceito científico com argumentos fracos e a incapacidade de sua aplicação". Bem, considerando que Gumilev zombou de Max Weber, ele zombar de Toynbee não deveria surpreender o leitor.

Porém, cada um desses gigantes deixou uma poderosa escola científica, em contraste a Gumilev. E Gumilev se sentiria humilhado se ele pudesse olhar nos corações de seus estudantes para descobrir que eles nunca nem souberam que ele existia, e ainda não sabem de sua existência. O mundo simplesmente não sabe que Gumilev criou uma ciência marxista universal que não só explica o passado, mas também prevê o futuro, e que o fenômeno que ele descobriu "pode resolver os problemas da etnogênese e da história étnica". Afinal, este foi o drama de sua geração.

História "Patriótica"

A significância da hipótese de Gumilev, como vemos, está em sua explicação de eventos históricos através de fenômenos naturais: como erupções da biosfera. Mas como aprendemos sobre essas perturbações naturais? Ela aparece, pelo estudo da história: "Em todas as fases, a etnogênese é o produto da ciência natural, mas o seu estudo só é possível através do conhecimento da história". Em outras palavras, nós não sabemos nada sobre a atividade biosférica que produz etnias, exceto que ela, na opinião de Gumilev, as produz. Se um novo grupo étnico aparecer sobre o mundo, isso quer dizer que a biosfera entrou em erupção.

Como, porém, podemos aprender que o mundo tem um novo grupo étnico? Parece que a partir da "explosão passionaria". Em outras palavras, da erupção da biosfera? Parece que ao explicar fenômenos naturais através de eventos históricos, nós temos ao mesmo tempo que explicar eventos históricos através de fenômenos naturais. Essa exótica explicação circular, misturando o objeto das ciências exatas com o de ciências humanas, demanda dupla meticulosidade da parte do autor. No mínimo, ele deve explicar para o leitor o que uma nova etnicidade significa: o que a torna nova e sob que critérios objetivos podemos determinar sua novidade? O paradoxo da hipótese de Gumilev é que ela não possui outro critério que o "patriotismo".

É claro que provar uma hipótese baseada em um um critério tão específico não é fácil. E para explicar o acontecimento da "super etnia" grão-russa, que era seu único interesse, Gumilev teve que virar tudo de cabeça para baixo, modificando a história que nos é conhecida desde nossos anos escolares. Ele começou bem longe, com as cruzadas da cavalaria europeia. A visão convencional delas é que ao fim do século XI, os cavaleiros foram libertar a Terra Santa dos "infieis" que a haviam tomado. A aventura, porém, foi atrasada por dois séculos. Primeiro, os cavaleiros conseguiram tomar Jerusalém dos seljúcidas, e até estabeleceram um Estado cristão, mas então os árabes os expulsaram. Então, por algum motivo, o grosso dos combates foi para o seio do Império Bizantino. Os cavaleiros tomaram Constantinopla e formaram o efêmero Império Latino. Eles então foram expulsos dali também. Em resumo, uma história confusa e um tanto ridícula. Mas o que isso tem a ver com a "super etnia" grão-russa?

Está tudo ligado, Gumilex explica, porque, contrariamente aos fatos conhecidos, a Terra Santa, Jerusalém, e Constantinopla eram apenas um ramo marginal do "imperialismo europeu". O foco principal da expansão era a colonização da Rússia. Por que a Rússia? Este é o segredo da história "patriótica". Ademais, os cruzados não apareceram em terra russa. Nós temos que assumir que ao se referir à "Rússia" ele na verdade quer se referir ao Báltico com seus castelos e Riga e Revel (hoje Tallinn) como seus centros comerciais, para onde, sob o pretexto de converter pagãos ao cristianismo, um ramo de cruzados respingou. Ali, ao redor desses castelos, uma pequena Ordem dos Irmãos da Espada se assentou.

Os beligerantes pagãos lituanos, porém, não gostaram de seus vizinhos, e em 1236, na Batalha de Siauliai, eles esmagaram os Irmãos da Espada e os pskovianos ortodoxos que se aliaram a eles. A Liga Hanseática de cidades alemães, não querendo desistir de seus recursos para infieis, convidou centenas de "teutônicos" para ocupar os fortes. É claro para o leitor na Rússia, que nunca ouviu falar na Batalha de Siauliai (mesmo as enciclopedias soviéticas não a mencionam), e educados pelo filme Alexander Nevsky (onde a escaramuça ordinária dos novgorodianos com esses "teutônicos" na qual ambos os lados se safaram quase sem derramar sangue, foi representada como um "massacre"), é difícil imaginar que à época, nos Estados Bálticos, os russos não enfrentaram os alemães, mas os "teutônicos" com os litanos. É claro, em seu tempo livro, "teutônicos" e lituanos não eram avessos a saquear as ricas terras novgorodianas. Seu relacionamento com a Rússia se limitava a isso.

Enfim, a fantasmagoria "patriótica" de Gumilev começa aqui. Essa é sua essência: "Quando a Europa começou a ver a Rússia como objeto de colonização...os mongois pararam cavaleiros e comerciantes". Essa é uma incrível reviravolta. Sob a caneta de Gumilev, a Horda, conquistando a Rússia com fogo e espada, transformando o país em um deserto, e vendendo a flor da juventude nacional para escravidão estrangeira, se tornou subitamente o anjo guardião da independência russa em relação à vilã Europa. Assim ele escreve: "A proteção da independência governamental, ideológica, comum e até mesmo criativa significava guerra com a agressão do Ocidente".

É estranho ouvir sobre "independência" governamental e outros tipos em uma situação na qual a Rússia era uma colônia da Horda. Mas Gumilev tem certeza do papel salutar dos mongois. Na verdade, se não fosse por eles, "a Rússia poderia, realmente, ter se tornado colônia da Europa Ocidental... Nossos ancestrais poderiam ter estado na posição de uma massa étnica oprimida... Podia ter sido assim. Faltava um passo". É uma imagem sombria, no mínimo. Mas é uma fantasia. Poderiam algumas centenas de cavaleiros lutando duro contra os lituanos ameaçar transformar a Rússia em uma grande colônia? Gumilev nos garante, porém, que eles teriam feito exatamente isso se "o gênio apaixonado-por-sacrifício de Alexander Nevsky não tivesse se manifestado aqui. Em troca de ajudar Batu Khan, ele demandou e recebeu ajuda mongol contra os alemães e germanófilos. A agressão católica foi sufocada". (Não nos é dito, porém, quando ou como este ato de agressão começou, nem por que serviços Batu concordou em ajudar Alexander Nevsky a repelir este ato de agressão).

De qualquer maneira, o leitor de Gumilev deve entender sua mensagem principal: nunca houve um jugo mongol. Houve uma troca mútua de serviços, na qual a Rússia "voluntariamente se associou à Horda graças aos esforços de Nevsky, que se tornou filho adotivo de Batu". Uma "simbiose étnica" emergiu dessa associação voluntária. E ela se tornou uma nova super etnia: uma "mistura de eslavos, fino-úgricos, alanos e turcos fundindo-se na nacionalidade grã-russa".

A "Controvérsia" de Gumilev

Bem, nós alteramos a história com uma virada "patriótica": redirecionando as Cruzadas da Palestina e de Bizâncio para a Rússia; representando o jugo mongol como "associação voluntária"; fundindo eslavos e turcos para formar uma nova "nacionalidade", quero dizer, super etnia. Mas como tudo isso, pergunto, se relaciona com as erupções da biosfera e com a "explosão de passionaridade" na qual a essência dos ensinamentos de Gumilev se encontra? Ocorre que essa relação vem do fato de que o velho grupo étnico eslavo em decadência, apesar de já ter ingressado em uma "fase de ofuscação", não obstante resistiu aos novos grão-russos; "o egoísmo estreito era o inimigo objetivo de Alexander Nevsky e seus camaradas". Mas ao mesmo tempo, "a mera presença dessa controvérsia mostra que junto ao processo de decadência, uma nova geração heroica, patriótica e sacrificial apareceu". E foi a "semente de um novo grupo étnico...Moscou tomou a iniciativa de unificar a terra russa porque é onde se acumulava um povo enérgico, apaixonado, indomável".

O que isso significa? Significa que a biosfera entrou em erupção em Moscou nos séculos XIII e XIV e que a "explosão de passionaridade" ocorreu ali. Não há outra evidência e não pode haver. Com isso, Gumilev confirmou sua hipótese. Vamos resumir. Primeiro, há pessoas indomáveis e apaixonadas capazes de se sacrificarem em nome da grandeza de sua super-etnia. Então, algum "gênio da paixão" reune ao seu redor essas "pessoas indomáveis e apaixonadas e as leva à vitória". Há uma "controvérsia", o novo grupo entra em conflito com o egoísmo do velho grupo étnico. Mas no fim, a passionaridade vence, e o velho mundo se rende à mercê do vencedor. O novo grupo étnico se ergue de suas ruínas.

Isso é tudo que Gumilev nos ferece como evidência da novidade do grupo étnico grão-russo? Bem como da erupção da biosfera na Rússia? Este é o único resultado de todas as suas fantásticas manipulações que distorceram a conhecida história do mundo de uma maneira "patriótica"? Mas este é apenas um conjunto trivial de traços comuns a qualquer grande mudança política, e pode ser aplicado a todas as revoluções e reformas no mundo. E em todos os outros casos, esses traços não demandaram qualquer manipulação histórica. Para demonstrar isso, vamos fazer um experimento, aplicando o conjunto de traços de Gumilev da erupção da biosfera à Europa dos séculos XVIII e XIX.

Experimento

Não é verdade que os pensadores iluministas derramaram toda sua energia no renascimento e grandeza da Europa; também uma super-etnia, na terminologia de Gumilev? Por que não chamamos Rousseau, Voltaire, Diderot e Lessing de "passionistas"? Não tiveram eles uma "controvérsia" com o antigo "grupo étnico" feudal? E eles não testemunharam a Europa "junto ao processo de colapso, erguer uma nova geração patriótica, heroica e sacrificial?". Em 1789, não levaram todas essas coisas à grande revolução, em cujo curso Napoleão (que Gumilev descreveu, em admiração, como um "gênio da paixão", em todo caso igual a Alexander Nevsky) emergiu no palco da história? Especialmente porque não foi necessário para Napoleão, em contrasto ao abençoado príncipe, fornecer serviços ao Khan bárbaro, suprimindo a rebelião de seu povo desesperado sob um jugo estrangeiro, desculpe, sob uma "associação voluntária"? O "egoísmo estreito" das velhas monarquias não resistiram à nova geração? E ela não se rendeu finalmente à mercê do vencedor?

Como podemos ver, tudo isso bate com a descrição de Gumilev da erupção da biosfera e da "explosão passionaria" (exceto que o "gênio da paixão" europeu o fez sem a ajuda mongol). Então o que nos impede de assumir que a biosfera entrou em erupção nos séculos XVIII e XIX na Europa? Podemos considerar o dia de 4 de julho de 1789 como o nascimento de uma nova super-etnia europeia? (Gumilev declarou o nascimento da super-etnia grã-russa como 8 de setembro de 1381). Ou podemos assumir que essa explosão apaixonada era inválida por razões "patrióticas"? Nós não podemos nos realmente nos permitir crer que a Europa "decadente", que entrava, como descobrimos em dúzias de páginas, em uma "fase de ofuscação", era realmente cinco séculos mais jovem que a Rússia.

Certo, vamos esquecer a Europa; este tema é doloroso demais para Gumilev e seus adeptos "patrióticos" (um adversário diria que ele veio com essa hipótese por hostilidade à Europa). Mas o que impediria que algum "patriota" japonês de declarar, com base nos ensinamentos de Gumilev 1868 como sendo o nascimento de uma nova "etnia" japonesa? Afinal, neste ano o "gênio da paixão" do Imperador Meiji retirou o Japão de séculos de isolamento e atraso; meio século depois, o Japão derrotou a grande potência europeia Rússia e, após mais meio século, desafiou a grande potência transatlântica América. Com que base, eu pergunto, podemos impedir os "patrioticamente afinados japoneses de terem uma maravilhosa erupção da biosfera em seu país no século XIX?

Mas isso representaria desastre para a hipótese de Gumilev! Ele moveu céus e terras por sua hipótese; ele não se esquivou das mais incríveis manipulações históricas para mostrar que a Rússia é a "etnia" mais jovem do mundo. E acontece que ela é mais velha, por séculos, não apenas que a Europa, mas também que o Japão. E isso não é tudo.

Os Caprichos da Biosfera

O leitor certamente fica assustado com o estranho comportamento da biosfera após o século XIV. Por que, eu pergunto, a sua atividade "passionária" cessou imediatamente após dar origem à Rússia? É claro, a biosfera é imprevisível. Mas mesmo assim, mesmo olhando para a tabela que Gumilev preparou para os leitores, é claro que não houve nenhum outro período na história com tão inexcusável inatividade, nem uma única erupção em seis séculos! Ou algo está errado com a biosfera, ou Gumilev fechou a torneira por razões "patrióticas". Porque vai que a erupção ocorra no lugar errado. Na América, por exemplo. Ou na África, a qual, por alguma razão estranha, foi ignorada por vinte e dois séculos.

Mas falando a sério, é difícil encontrar um exemplo no qual a teoria da etnogênese de Gumilev funcione bem. Vamos começar pelo fato de que o Califado Árabe durou apenas dois séculos (do século VII ao século IX), nem chegando perto as cinco "fases" obrigatórias da etnogênese, com trezentos anos cada aproximadamente. E o que aconteceu na China não é explicado pela hipótese de Gumilev: na verdade ela morreu no século XIX, entrou em uma "fase de ofuscação", e subitamente ressuscitou. Mas que ressurreição! Ninguém além da biosfera, segundo Gumilev, poderia dar uma segunda vida, apesar de sua hipótese não dar espaço para algo como isso.

O que podemos tirar disso tudo? O que há nos ensinamentos de Gumilev para "inebriar todo o país" após sua morte em 1992? O que "a única escola histórica séria" deveria ter deixado para trás (apesar de não tê-lo feito)? Uma mistura de megalomania, terminologia cientificista e voluntarismo "patriótico"? Bem, Gumilev pagou um alto preço por sua fatídica dissonância soviética. Neste sentido, ele foi mais uma vítima do isolamento soviético do mundo. Um triste destino.