07/07/2017

Aleksandr Dugin - Pós-Antropologia

por Aleksandr Dugin



Sociedade Humana após a Crise: Inferno na Terra pela Lente da Sociologia Profunda



A Sociologia das Profundezas


Uma sociedade concreta (fenomênica) sempre consiste em duas partes, a superficial e a subterrânea. A parte superficial é a que normalmente chamamos "sociedade", significando uma esfera de atividade racional onde o logos (λόγος) prevalece. Este é o domínio do "diurno". A parte subterrânea é a ilha escura, subaquática, do inconsciente coletivo, a região da noite social (o "noturno"), onde o mito (μύθος) governa.

Por um algum tempo, a ciência progressivista acreditou que essas duas partes estavam situadas em uma ordem diacrônica. Em tempos antigos (e entre povos "primitivos", o infeliz "resíduo" de tempos antigos), o mito era predominante. Mas o progresso da civilização gradualmente suplantou a ordem mitológica e a substituiu com uma ordem baseada no logos. A comunidade, ou Gemeinschaft, é substituída pela sociedade, ou Gesellschaft (F. Tönnies). Mas essa exaltação otimista não durou muito. Conquanto a fé cega no progresso reinou quase de forma inquestionável na Europa Ocidental dos séculos XVIII e XIX, o inconsciente, onde as leis eternas e imutáveis do mito predominam, foi descoberto no início do século XX.




As obras de Jung desenvolveram a teoria freudiana e estabeleceram uma nova topologia da psicologia humana. Freud já havia mostrado que além do "Eu" (o "ego"), um "Isso" (em alemão "es", em latim "Id") invisível e reprimido opera ativamente dentro do homem. Jung demonstrou que a base desse "Isso" está enraizada em uma realidade especial comum a todas as pessoas. O inconsciente coletivo é um para todos.

O seguidor de Jung, o sociólogo francês G. Durand, se apoiando na teoria jungiana do inconsciente coletivo e seus arquétipos, complementou a topologia psicanalítica com uma sociológica, deitando assim as bases para uma "sociologia das profundezas", "sociologia profunda", ou "sociologia da imaginação". Assim, a segunda parte, subterrânea, da sociedade, em cujo coração jaz o mito, foi descoberta, estudada e descrita.

Sociólogos comuns como Weber, Sombart, Durkheim, Moss, Sorokin e outros, não raro descreviam a sociedade superficial, diurna, e suas propriedades, ou seja, o logos social. Sociólogos das profundezas, por outro lado, como G. Durand ou M. Maffessoli, empreenderam a exploração dos mitos sociais, elaborando um tipo de sociologia do mito.

O estudo da interconexão entre os dois níveis principais dessa topologia, ou seja, entre logos e mito, enterrou o conceito de racionalidade e a noção de "progresso" já na primeira fase. Segundo G. Durand, acontece que essa não é mais que uma racionalização do mito de Prometeu. O próximo passo foi a descoberta de que o próprio Logos, como destino axial da cultura europeia ocidental (de Platão ao positivismo, passando por Descartes) não era mais que uma edição especial do mito (um "mito ascendente" na teoria de G. Bachelard ou o "regime diurno" na teoria de Durand). Essa é a descoberta da sociologia profunda (a sociologia da imaginação) baseada no estruturalismo de C. Lévi-Strauss, na história da religião (H. Corbin, M. Eliade), na psicanálise (C.G. Jung), na reflexologia (M. Bekhterev), na física e matemática modernas (R. Tohm, V. Pauli). Isso abriu uma perspectiva completamente diferente da essência, conteúdo, significado, natureza e qualidade dos processos sociais. A sociologia clássica, que havia detectado inúmeras falhas do logos na sociedade (por exemplo, o princípio da "heterotelia", uma lei sociológica que afirma que os processos sociais quase sempre atingem objetivos outros do que os intencionados, invertendo assim a lógica causal na qual os pais fundadores da sociologia, os positivistas Kant e Durkheim, tão firmemente acreditavam) veio através da sociologia profunda para formar um sistema consistente e semanticamente completo. O enorme material metodológico e documental acumulado pelos sociólogos clássicos começou, assim, a ser interpretado de uma maneira inteiramente nova.

Assim, ao fim do século XX, uma "sociologia em dois níveis" foi estabelecida na qual a pesquisa sobre o logos social foi paralelada por estudos do "subterrâneo social" ("masmorra social") e do "mito social". Em outras palavras, o "inconsciente social" foi descoberto.

Logos Social

Por sua profissão, um sociólogo é chamado a olhar para além da "opinião pública", das "ideias comuns", e do "senso comum", ou seja, aquelas crenças e ideias que circulam entre as massas em sua "maioria" e constituem o esquema da "sabedoria convencional". A "opinião pública" jamais reflete a imagem completa. Seu lugar natural está situado no espaço entre a verdade científica e o que é uma quimera pura, ou nada. Mesmo Platão, em sua República, definiu "opinião" (δόξα) como nos mostrando algo ao mesmo tempo que nos oculta outra coisa, em todos os casos nos revelando não o que jaz na superfície da expressão, mas outra coisa, e assim sempre nos enganando. Especialistas americanos em especulação financeira e mercados de ações formularam a mesma lei em termos mais grosseiros: "a maioria está sempre errada".

Ao analisar a "opinião", os sociólogos derivam de tal a verdade semi-manifesta e semi-oculta, e explicam assim o mecanismo e, por sua vez, a estrutura semântica das mentiras (silêncio, eufemismos, projeções, transposição, e outros artifícios retóricos). É assim a soma de verdades científicas extraídas, esclarecimentos, e etiologias de equívocos e mentiras, o conteúdo do logos social, que constitui o objeto da sociologia clássica.

O Pessimismo dos Sociólogos Clássicos: o Logos à Beira da Catástrofe

A maioria das maiores reconstruções ("grandes teorias") dos sociólogos clássicos estava marcada pela natureza perturbadora dos processos sociais do século XX. A própria ideia de "progresso", que se tornou algo tomado como dado na "opinião pública", foi em dado momento reconhecida como um eufemismo projetado para iluminar premonições de desastre iminente.

A maioria dos sociólogos, e Pitirim Sorokin em particular, enfatizou de forma unânime a natureza hedonista, material, sensual e sensata da civilização ocidental moderna, e essa qualidade afetou o "logos social" muito mais profundamente ao longo do século XX. Valores materiais, envolvendo uma "obsessão com a economia", a busca por uma liberdade material egoísta e por prazer, assuniram protagonismo e solaparam, erodiram a estrutura da organização racional da sociedade. Quase todos os sociólogos previram de uma maneira ou de outra que o logos social do Ocidente e toda a civilização mundial estando sob influência ocidental decisiva, está sob ameaça de colapso.

Esse sentimento se intensificou especialmente na era pós-moderna, quando muitos começaram a falar na "sociedade do espetáculo" (G. Debord), na "ordem dos simulacros" (J. Baudrillard), ou no "fim da história" (F. Fukuyama). De fato, Fukuyama falou em uma "sociedade de vácuos", ampliando a "fragmentação dos laços sociais", etc. O logos social havia se desintegrado diante de nossos olhos, se transformando em algo só verificado com grande dificuldade e demandando novos métodos sociológicos para entender e explicar.

Alguns, como Castells, sugeriram timidamente que o logos não morre, mas passa a uma nova forma de existência como rede. Mas isso não soa muito convincente. Em todo caso, começando no século XX, a sociedade clássica esteve no limiar, como dizem os otimistas, de uma metamorfose qualitativa fundamental ou, como suspeitavam os pessimistas (como Spengler), do colapso.

O momento social através dos olhos de sociólogos profundos: deslizando para a noite

Ainda mais alertados pelo esgotamento da modernidade estão os sociólogos profundos, que tem em por princípio acreditado que reavaliar o logos a partir do mito equivale a um desastre, o que por definição e de partida já está acometido por colapso e uma inflação colossal do logos. Não sendo opositores do logos, eles apenas apontam que o gigantesco esforço de reavaliar metade da sociedade (a metade diurna) está repleta de possibilidade de regressão rápida e de cair no extremo oposto, as regiões do inconsciente, sem alívio ou estágios intermediários. Eles consideraram corretamente que os totalitarismos europeus do século 20 eram uma queda tão rápida para o mito, por exemplo, o regime nazista (com seu "Mito do Século XX", que é, admitidamente, uma paródia pálida e pobre do mito em si) e a URSS com sua tentativa quiliástica de construir um "paraíso na terra" (o mito diacrônico-trinitário de Joachim de Flora, ignorado por Hegel, e especificamente o messianismo cúltico russo).

Mas a inflação do logos não cessou com a vitória sobre o fascismo ou após o fim do comunismo. Na década de 1990 surgiu a ilusão temporária de que o logos social finalmente havia encontrado sua encarnação final no paradigma americano liberal-democrático (daí o globalismo e o "fim da história") que duraria para sempre (como os neoconservadores americanos tentaram inaugurar com o "Projeto para um Novo Século Americano" e teorias de "hegemonia benevolente" e "império benevolente"). Nos anos 2000, tudo isso tornou-se cada vez mais duvidoso. Quando a crise financeira de 2008 eclodiu e o democrata negro Barack Obama chegou ao poder nos EUA, ficou claro que a rodada anterior não era o estabelecimento de uma "nova ordem mundial", mas a agonia final do logos ocidentocêntrico.

Do ponto de vista dos sociólogos profundos, o ponto em questão foi a colisão de dois mitos que atuaram durante três séculos nas "masmorras" das sociedades da Europa Ocidental (e daquelas que caíram sob sua influência).

A era moderna e o Iluminismo refletiram o surgimento do mito de Prometeu, que inspirou tanto os racionalistas como os românticos, o povo do dia e os poetas da noite. O titã, o trapaceiro, o enganador dos deuses (noite), Prometeu, atuando como Fausto e Lúcifer, traz às pessoas o fogo e o conhecimento (dia). Schelling, Hugo, Hegel, Marx e os liberais e os socialistas foram inspirados pelo mito de Prometeu. Mesmo no fascismo, através da lente nietzscheana do "Super-Homem" e do wagnerianismo, Prometeu encontrou expressão peculiar.

Mas, com o final do século XIX, Prometeu começou a dar lugar ao mito de Dionísio. Emanando de salões decadentes, ele penetrou a cultura e, posteriormente, tornou-se o principal mito das pessoas envolvidas na mídia (e, como regra geral, marginais, bêbados, pervertidos e viciados, como observou acertadamente Durand), no cinema e mais tarde na televisão, intelectuais e artistas - pessoas típicas da noite em praticamente todas as sociedades. Gradualmente imbuída do estilo individualista-hedonista de "jornalistas", dos céticos inveterados e dos adversários de toda organização racional (inimigos do logos social), a sociedade tornou-se uma sociedade de entretenimento e prazer, a "sociedade do espetáculo".

Dionísio deslocou Prometeu, de cujo mito o fim é descrito no livro esplêndido e irônico de Andre Gide, Prometeu Mal Acorrentado. Mas o próprio Dionísio, gradualmente, perdeu o apelo, o ímpeto e a energia na medida em que as perversões decadentes da elite, portando algo estilisticamente atraente, transformou-se na podridão nociva das massas em decomposição deslizando para a noite. Paradas gay plebeias transformaram a atmosfera refinada dos salões de Oscar Wilde, a insanidade solar de Arthur Rimbaud e o gesto poético do Apolo de Kuzmin em kitsch plebeu (mais um exemplo do significado da expressão "não jogue pérolas aos porcos"). O mito de Dionísio, por sua vez, atingiu o ponto de saturação e tornou-se uma das fontes de frescura do pântano estancado e estilifaliano.

O ciclo da cultura ocidental chegou ao fim. A pós-modernidade com seus epifenômenos é uma ilustração convincente disso.

De qualquer forma, os sociólogos das profundezas estão aguardando um novo mito (talvez esperem que este seja o mito equilibrado e integrador de Hermes -, como o grupo Eranos, que incluiu Jung, Eliade, Bachelard, Corbin, Dumezil, Scholem e Durand), Mas eles entendem claramente que o logos europeu está prestes a finalmente deslizar para a noite. Falando francamente, parece-me bastante duvidoso que essas pessoas maravilhosas, esses neo-hermetistas, consigam deter o que está caindo, muito menos mudar este outono...

Topologia Jungiana

As observações anteriores eram necessárias para chegar ao tema principal, isto é, nossa tentativa de conceber o que aguarda a humanidade uma vez que a pós-modernidade finalmente se torne manifesta e o logos social finalmente pereça na noite do mito. Em outras palavras, estamos interessados ​​em reconstruir a imagem da dimensão sociológica iminente, levando em consideração os significados estruturais e semânticos que nós (ou não) devemos sobreviver (ou não). Com base numa reconstrução sociológica das teorias clássicas e não-clássicas, podemos construir diferentes modelos do futuro, baseando-nos na topologia psicanalítica de Jung, que se preocupou com o destino do homem e tentou, com a maior imparcialidade possível, descrever a plenitude do fator humano em suas diversas dimensões em diferentes estágios. Antes de "pintar" a "sociologia do Apocalipse" com a "pintura de Jung", lembremos os principais parâmetros de sua topologia.

De acordo com Jung, um ser humano é um sistema complexo composto por vários pólos, os principais sendo "ego", "persona", "anima/animus", "sombra" e Selbst ("self"). Adicione o "superego" de Freud por uma questão de completude.

Meu "Eu" e minha Máscara

O homem é considerado um indivíduo racional que chama a si mesmo "eu". Na psicanálise, esta função é denotada pelo termo latino "ego", cujas propriedades são o intelecto, a capacidade para as operações mentais, a posse de estruturas lógicas (ou "proto-lógicas", como as chamadas tribos primitivas" e "selvagens"), a capacidade de auto-reflexão e separação clara de si mesmo ("ego") do mundo exterior, dos "outros" e "o outro".

O logos social generalizado é a projeção coletiva do "ego", o que Freud chamou de "superego" ou "super-Eu".O "ego" sempre se correlaciona com o "superego", que assim dá origem a um sistema de normas sociais e determina uma grande parte do ser do "Eu".

No que diz respeito a outros "Eu" sociais e ao logos social agregado (superego), o ego atua como persona, personalidade ou máscara. Existe uma lacuna entre o ego e a personalidade que consiste no "ego" possuir outra dimensão, invertida em si mesma, que a distingue da personalidade ou "persona" através de uma função sócio-lógica plenamente exaustiva. O ego tem uma psique, enquanto uma persona não (tal é cuidadosamente escondida e ignorada). A psique do ego se faz conhecer apenas quando uma persona começa a se comportar ou se sentir de forma inadequada na sociedade ou diante do superego dado como padrão na moralidade e nas regras do pensamento (uma desordem mental).

"Eu" geralmente parece estar sozinho como resultado do reflexo do logos sobre a separação física do corpo humano. Mas isso não é necessário, enfatiza Jung. A deformação das estruturas lógicas, um rebaixamento do nível mental (abaissement du niveau mental) ou simplesmente sonhar pode facilmente desfocar a singularidade do "Eu", sua identidade e dispersar em várias frações o "alter ego". Em alguns casos de psicose, isso se manifesta através de vozes, através da visão, ou mesmo através de visões de si mesmo. Em alguns casos, vários "egos" podem formar uma forma de identidade bastante estável (como no Dr. Jekyll e no Sr. Hyde de Stevenson).

O "Eu" de Jung não é uma constante de uma vez por todas, mas é plural. Às vezes, Jung fala do ego como uma parte de uma psique complexa ao lado de outros "complexos".

O Reino do Inconsciente Coletivo e o Selbst

Dentro do "ego" começa o espaço da psique contendo diferentes camadas, algumas próximas do "ego" (como memória, avaliação subjetiva de ações e "invasão" de baixo) e as mais afastadas dele, como o inconsciente .

Freud chamou o inconsciente de "es" ou "id". Ele próprio restringiu o inconsciente aos sentimentos e instintos individuais formados como regra durante a infância e até mesmo no período pré-natal. No famoso sonho de Jung de 1909, no qual ele percorreu o Atlântico por navio com seu professor, viu que, no inconsciente, há um nível ainda mais profundo que deixa de ser individual e torna-se coletivo. O domínio do inconsciente coletivo é o centro da topologia conceitualizada de Jung.

O inconsciente coletivo, de acordo com Jung, é o mesmo para todos e é habitado por mitos e arquétipos eternos. Este inconsciente coletivo é explicado por parcelas estáveis ​​de certos sonhos (grandes sonhos), mitos, histórias, contos de fadas, visões religiosas e obras artísticas. O inconsciente coletivo percebido, integrado, aceito e sacralmente exaltado, dirigido acima para a luz na superfície é o que Jung denomina Selbst ou "self".

Animus/Anima e o Duplo Obscuro

Além disso, entre o ego e o inconsciente coletivo existem duas das principais instâncias intermediárias: o animus/anima (a alma que Jung divide por gênero) e a "sombra" (umbra, die Schatten).

Animus/anima (como os Seraphitus e Seraphita de Balzac) é uma imagem do inconsciente coletivo, pois aparece em forma pura no ego masculino ou feminino. No decorrer de sua pesquisa (incluindo estudos clínicos), Jung observou que os homens imaginam constantemente o "inconsciente" ("es" e "id") como feminino (daí "anima", a alma feminina), enquanto as mulheres o imaginam como masculino (daí "animus", a alma masculina). Em russo, seria tentador usar os cognatos dusha ("alma") e dukh ("espírito"), mas eles têm um significado constantemente diferente (embora se poderia perguntar: algum deles tem algum significado hoje em dia? ).

Há também a "sombra" que representa o gêmeo escuro do ego, que consiste nos produtos negativos do diálogo entre o ego e o inconsciente coletivo. Tudo o que a mente diurna reprime, exclui, expulsa, censura e não reconhece nos impulsos que se elevam das profundidades inconscientes, compõe a "sombra", moldando sua estrutura e uma espécie de "anti-persona" (simetricamente oposta a uma persona). O diabo é a forma generalizada da sombra.

Individuação como a Realização do Selbst

De grande importância nas obras de Jung é o sujeito da "individuação". A individuação é a transferência harmoniosa, equilibrada, incremental e mensurada das estruturas inconscientes coletivas ao nível do logos. Uma vida humana corretamente orientada é a realização do Selbst, isto é, a individuação. Somente neste caso, o ego serve o propósito de deixar o que está no nível do mito adentrar no reino do logos.

Jung esclareceu a relação entre instâncias dadas em sua topologia, forneceu nuances, explicou detalhes e resolveu os enigmas de suas relações dialéticas. Ele delineou a dialética desta estrutura em seus pacientes e em obras de arte, doutrinas religiosas, teorias filosóficas, biografias famosas e nos preconceitos dos cidadãos comuns. Praticamente todo o seu trabalho criativo foi dedicado a esse fim.

Sociologia da Imaginação

Aplicar a topologia de Jung à sociedade (com certos ajustes) produz a sociologia profunda ou a sociologia da imaginação como desenvolvida principalmente por R. Bastide e G. Durand. O logos social ("consciência pública" de Durkheim) é o ego generalizado (superego). No outro extremo está o inconsciente coletivo (ou inconsciente social). Entre eles está o ego humano que enfrenta a sociedade através da sua personalidade (persona) e enfrentando o inconsciente coletivo (o reino noturno dos mitos) através da sua psique e suas figuras (a anima, o animus e a sombra).

Entre a consciência coletiva e o inconsciente coletivo existe uma dinâmica na medida em que ressoam em certas questões e são homólogas, enquanto em alguns casos entram em discórdia e conflito. Isto é devido à cinética social (incluindo a mobilidade) e ao conteúdo profundo dos processos sociais. O indivíduo ou o humano é um ponto nesta dialética complexa de dois estágios de noite e dia, ou diurno e noturno.

O modelo tripartite de topologia social de Pitirim Sorokin, que distingue três tipos de sociedades e estruturas sociais (ideacionais, idealistas e sensuais) com base em uma abordagem puramente heurística, recebe bons alicerces nas três estruturas arquetípicas de Durand - a "heróica", a "cíclica" e a "mística", que são um homólogo mitológico direto para os construtos sociológicos de Sorokin. A escola de Durand, o Centro de Pesquisa sobre o Imaginário, tem nos 50 anos de sua existência produzido uma enorme quantidade de trabalho hermenêutico sobre a "mito-análise" de sistemas sociológicos e a "mito-crítica" de obras literárias ou registros históricos.

Sonhando o Mundo

Agora a crise econômica. Acima, dissemos que é altamente provável que a crise financeira atual seja uma expressão de um processo muito mais profundo, ou seja, o declínio do logos social borrado ou saturado de momentos sensuais (à la Sorokin) ou do mito dionisíaco tomado pelas massas osculadoras (à la Durand). No sistema de Jung, esse processo pode ser visto como o "rebaixamento do nível mental" (abaissement du niveau mental). Suponhamos que as estruturas lógicas do ego e do superego se desmoronem em um limite crítico - e isso é muito provável se considerarmos as observações sobre a sociedade russa, que se degradou rapidamente no sentido intelectual e moral, bem como nos processos ocorrendo na cultura e na política ocidentais. Neste caso, devemos esperar que a humanidade mergulhe de cabeça no regime noturno.

Na topologia junguiana, isso significa que descemos para o inconsciente coletivo. Isso não é simplesmente niilismo. O próprio conceito de nada, ou nihil, pertence à ordem das estruturas lógicas capazes de representar abstratamente a negatividade pura em contraste com a presença pura. Mas, na medida em que a lógica é corroída, o nada cristalino do niilismo lógico não nos parece tão vazio, mas cheio de significados indescritíveis, imagens inconsistentes e sons cacofônicos arranjados desarmoniosamente. O niilismo da noite é cheio de sons, cores e formas, mas apenas do ponto de vista do dia. Isso é nada.

Começaremos a ver os pontos críticos enumerados abaixo na escuridão. Afinal, sempre há objetos mais escuros do que outros. É neste ponto que chegamos à versão junguiana da futurologia pós-crise.

O logos social caiu. Apesar de ter derrotado exitosamente todos os seus concorrentes lógicos e ideológicos (teocracia, monarquia, fascismo e comunismo), o liberalismo não lidou com o fardo do logos social, ou seja, é incapaz de defender a ordem do dia sozinho contra a noite se aproximando de todos os lados e de dentro. A última tentativa desse tipo foi a aventura imperial dos neoconservadores americanos. Enquanto isso, os logoi anteriores são deixados irremediavelmente repudiados e perturbados.

O caráter diurno do liberalismo é relativo. Talvez ele tenha vencido precisamente porque ofereceu o mais suave de todas as ordens, o logos mais discreto, o instrumento mais comprometedor e tolerante da repressão diurna do inconsciente noturno. Mas agora tem sido deixado um a um em face do caos - o mesmo caos em que se baseou anteriormente.

Se a atual crise econômica (para a civilização liberal, a economia é um substituto da ordem e do logos) acaba por ser a última, então ocorrerá um "rebaixamento do nível mental da humanidade" fundamental. O mundo será mergulhado em um sonho.

Que tipo de sonho será esse?

Os Novos Atores da Pós-Antropologia

O desmantelamento do "ego" e do "superego", seu retorno à neblina escura da psicose, leva ao surgimento de novos atores na vanguarda. Esses atores não serão nem as classes (como no comunismo), nem raças (como no nacional-socialismo), nem mesmo o indivíduo (como no liberalismo) - todas essas ideologias sociais foram fundadas em sistemas lógicos específicos e, paralelamente a isso, em mitos razoavelmente distinguíveis noturnamente estruturados. Esses atores serão as formas do inconsciente que sobraram a partir da época da dominação luminosa do logos. Esta será uma ordem pós-logos que levará à introdução da pós-antropologia.

As principais figuras da relação entre o ego e o inconsciente adquirirão autonomia e se tornarão o substituto do ego. A humanidade vai ouvir "vozes".

O fato de que o ego do homem moderno se tornará dinâmico, plural, lúdico e aleatório já pode ser visto em todos os lugares - na constante mudança de profissões, mudanças de residência (o novo nomadismo), mudança de gênero, apelidos, o aparecimento de duplos e clones (primeiro na literatura, filmes e jogos de computador, mas amanhã na prática). Isso se tornará comum, pois a vida adquire mais uma natureza irônica e lúdica. O ciclo encolherá quando famílias, parceiros, amigos, países e ocupações forem alterados com velocidade caleidoscópica. As pessoas mudarão seu gênero com maior freqüência, e as operações de mudança de sexo virão a ser mais do que um caso único - alguém é uma mulher, fica farta disso, torna-se um homem, depois uma mulher de novo, e assim por diante. Mas depois de um certo ponto - dificilmente perceberemos - a noção de identidade individual se dissolverá e o princípio da liberdade corroerá os "grilhões totalitários" da individualidade. No átomo humano, os componentes separados serão "descobertos" - elétrons, prótons, quarks que exigirão para si mesmas "novas liberdades" (como o escritor belga Jean Ray antecipou em seu A Mão de Götz von Berlichingen).

E é neste momento que enfrentaremos uma série de fenômenos e adventos muito interessantes que definirão o panorama da paisagem pós-antropológica.

A Vinda da Sombra

A "sombra" será um dos atores principais do "Apocalipse Jungiano". As fantasias de sombras vivas (nas obras de Anderson e no folclore popular) são um relato famoso que aparece repetidamente na literatura, no teatro e na ópera. "Sombra" é um sinônimo para o diabo, e podemos dizer que essa imagem coincide com as amplas e variadas descrições do anticristo ou da "vinda de Satanás". A perspectiva de Jung difere das opiniões religiosas e teológicas sobre esse assunto, na medida em que examina a figura do diabo - no espírito da "Apocatastasis" de Orígenes Adamantius - como relativamente negativa. De acordo com Jung, no "diabo-sombra" acumula-se tudo o que foi descartado pelo ego ao longo de uma individuação mal sucedida, isto é, ao longo da tradução do inconsciente coletivo e seus arquétipos na esfera do logos. Assim, o diabo não é independente ou primordial, mas meramente simboliza a totalidade das falhas humanas e os resultados da fricção com o "superego", que por sua vez não está associado tanto a erros individuais como com a dissonância e o conflito do logos social (incluindo os aspectos religiosos e morais) com o complexo mitológico situado sob os alicerces da sociedade. A sombra é o Selbst que falhou. Afinal, o diabo foi uma vez um anjo de luz que caiu...

A sombra que se revelará no futuro próximo não deve ser necessariamente considerada como o "diabo" da religião cristã. Em termos sociais e psicanalíticos, isso simplesmente será um "resíduo", algum tipo de substituto de um "eu" desaparecido e diante do inconsciente coletivo indiferenciado, essa figura parecerá como "palha salvacional" que, no que concerne sua identificação, será maior do que o caos mitológico nadando abaixo. Portanto, para a pós-humanidade, a "sombra", como uma imagem preservada do "ego" perdido, se apresentará como uma espécie de tentação. A sombra não agirá como um inimigo da humanidade (especialmente porque o homem, nesse momento, dará lugar ao pós-homem). Em vez disso, ele atuará como um inimigo do abismo indiferenciado dos sonhos indistinguíveis.

O que esta "sombra" será em sua vinda? Isso é difícil de imaginar, uma vez que a paisagem social mudará significativamente. O colapso do logos não irá cancelar a ciência, ou mais precisamente a tecnologia, daí a dissolução do indivíduo pode muito bem ser combinada com a continuação do progresso tecnológico pela inércia. Portanto, a sombra virá na comitiva de máquinas e dispositivos. Mas não será um ser humano singular ou grupo de seres. Será algo parecido com uma nuvem, névoa, uma nebulosa de pensamento que pode assumir várias identidades, nomes e tipos. Essas imagens serão um pouco vagas, como se estivessem cobertas de neblina. A sombra quase não aparecerá na forma de monstros, mas sim na forma de memórias e sonhos lânguidos e densos.

Este é um pólo.

Operação Alraune

Outra figura do Apocalipse Jungiano será a anima feminina desencarnada. Esta não será uma fêmea humana, mas a feminilidade em seu aspecto coletivo e aparicional.

Aqui vale a pena abordar a idéia da anima nas obras de Jung com mais detalhes. A anima de Jung não é uma imagem de uma mulher baseada no instinto animal ou na observação luxuriosa do sexo feminino, nem mesmo na memória genética, como o freudismo e a psicologia materialista apresentam. É a criação de um ego puramente masculino que, através da anima, estrutura tanto a si mesmo como as relações com o outro interno (o que é o mesmo), procedendo a projetar essa relação para o exterior sobre o outro e si mesmo agora dentro da estrutura da forma - isto é uma mulher no sentido de gênero social.

O ego masculino não sabe nada sobre o ego feminino, e não quer nem pode saber nada sobre isso. Ele meramente projeta uma imagem viva, na qual ele é apelado pelo inconsciente coletivo ("es"), na matéria sócio-biológica circundante. A anima interna e a mulher externa são para o ego masculino (logos) estritamente um e o mesmo. A anima é primária e aquilo que não coincide com a anima em uma mulher não é notado, é rejeitado, é censurado ou odiado pelo ego masculino. Tudo isso foi rastreado pelos psicanalistas em milhões de exemplos.

Se a anima masculina é atraída para a figura da Melusina (a mulher-peixe feérica com uma cauda e sem órgãos genitais que habita a água), então uma falta de correspondência em mulheres externas em relação a este padrão será apresentada como sua culpa e não como culpa da imagem (na qual, de fato, não há nada de patológico - afinal, ela está harmoniosa e firmemente tecida no léxico sagrado dos grandes sonhos).

Pesquisas paralelas foram conduzidas por Levi-Strauss no estudo da estrutura de parentesco. Nos mitos de muitas tribos americanas, bem como de outros povos da África e da Melanésia ou, mais amplamente, do mundo inteiro, o tema de uma "escala adequada do casamento" é recorrente. Para mostrar o que é correto, um mito mostra o que é incorreto. Existem inúmeros motivos estáveis ​​sobre o casamento com animais (Masha e o urso etc.), espíritos, demônios e anjos (o Livro de Enoque), objetos, monstros e assim por diante. Estes são muito distantes de relacionamentos, o que significa que o ego se moveu muito longe nos horizontes do inconsciente e, como regra, as lendas alertam que nada de bom pode vir disso.

Parentesco próximo demais é algo representado pelo incesto, um tabu que reside no coração de todas as estruturas sociais conhecidas com apenas as exceções mais raras (como o zoroastrismo que legalizou e até prescreveu o incesto e na prática das seitas sabáticas judaicas na Turquia - veja M. Maffesoli). Em relação à anima, isso significa que o ego chegou muito perto do inconsciente coletivo, que está repleto de dissolução ou poderia em seu lugar apresentar suas próprias projeções "egoístas" levando à esterilidade ou à geração de monstros, ou seja, a fluir para o reino da sombra. A sombra é a totalidade desses tabus que o homem tem sido tentado a violar.

Aqui surge uma pergunta: de onde vem o ego masculino? Diferentes sociólogos, filósofos e psicólogos ofereceram diferentes respostas. O sociólogo marxista Bourdieu, por exemplo, acredita que o gênero é um fenômeno puramente social, ou seja, o ego é dotado de uma qualidade masculina exclusivamente pela sociedade - a ditadura do "superego" - e, na prática, através da educação e da estruturação das relações familiares. De acordo com Bourdieu, se um menino é criado e tratado como uma menina, ele será uma menina, e seu ego e personalidade serão totalmente femininos em personalidade. Nisso está baseada a "tolerância de gênero" contemporânea e a interpretação ocidental dos direitos humanos, em que o homem (como o clássico do liberalismo, Locke, afirmou) é uma tabula rasa sobre a qual a sociedade escreve o que agrada. Marx também pensou assim.

Em qualquer caso, pode-se supor que não é o gênero de uma alma (anima-animus) que depende em se o ego é masculino ou feminino, mas pelo contrário - o gênero de uma alma através de uma lógica inversa determina a identidade de gênero do ego. A anima leva a que o ego seja masculino, a fim de tornar o processo de individuação harmonioso, ou seja, sua emergência à luz do logos. Por outro lado, o animus extrapola-se na região do lógico através do ego feminino para exercer a mesma individuação. Notemos que todas essas considerações se aplicam apenas à teoria de Jung, segundo a qual uma alma tem um gênero.

De qualquer forma, compreender a autonomia particular da alma imbuída de gênero nos permite visualizar a figura da Anima que provavelmente nos encontrará ao longo da crise financeira global. Esta feminilidade "sem mulheres" ou "além das mulheres" pode muito bem aparecer através de uma série de arquétipos que se manifestarão diacronicamente ou de modo sincrônico sob a forma de figuras femininas gigantes, mulheres escuras, feias e velhas, fadas, ondinas, ninfas, e salamandras, ou na forma de elementos femininos diretamente, como água e terra. A fantasia plástica do logos social decadente produz formas técnicas ou virtuais. No entanto, não é importante se essas figuras da Anima aparecerão por meio de um mau funcionamento no processo de clonagem ou como resultado do desenvolvimento das ilusões visuais da tela totalitária. O mais importante nisso não é a tecnologia do fenômeno da Anima, mas seu significado filosófico. O logos social tem sido, no último milênio, predominantemente masculino. Ao se decompor, ele derramará a fantasia feminina final, assim como, de acordo com a lenda, a semente largada pelo enforcado produz a mandragora ou Alraune (vejam o maravilhoso romance de Hanns Heinz Ewers, Alraune).

Quando pensamos na feminilidade sem as mulheres, queremos enfatizar apenas como a anima está associada ao ego masculino, e isso significa que o pólo pós-antropológico da anima provavelmente estará vinculado aos homens desaparecidos e seu "Eu" naufragante, em vez das mulheres as quais, do ponto de vista lógico, serão relegadas a um nicho existencial específico. Vamos agora considerar exatamente qual tipo de nicho este será.

Animus

Se a anima é o produto do ego masculino puro, então o animus é o produto do puramente feminino. O homem que constitui o sonho da mulher, ou seja, a forma masculina de "es", nunca existiu e não existe. Este não é o ego masculino, mas algo completamente diferente. Príncipe encantado, o cavaleiro nobre, o herói - a mulher dá à luz e povoa a cultura com eles. A mulher criou o homem. No sentido literal, ela o deu à luz. Figurativamente, ela o inventou. O homem foi pensado pela mulher em três formas - como o bebê, o herói e o professor sábio. Estas são as três instâncias do inconsciente. Puer ludens, homúnculo, lilliputiano, a criança que brinca e ri - são sugestões do inconsciente que o ego feminino é capaz de abraçar, compreender e englobar. O marido heróico é o inconsciente na forma com a qual a batalha existencial pode ser travada para apostar sua existência (já que os homens reais que mereceriam isso simplesmente não existem). Finalmente, o professor idoso é o inconsciente na forma de morte que captura a dinâmica do ego feminino e congela-a no gelo da eternidade. Tais homens vivem apenas na psique da mulher e, a partir daí, aparecem nas obras de arte. Os talentosos artistas feminizados leem as delgadas dobras dos sonhos das mulheres e as levam à cultura. E, a partir daí, como padrões, eles assumem o ego masculino, inteiramente diferente em estrutura e estilo, conforme as normas sociais, a ditadura do "superego" e mantêm o status de persona.

O enfraquecimento da pressão da cultura leva os homens a se transformarem no que vemos ao nosso redor hoje, do que o ego feminino recua em desgosto. Estes são os bebês chorões e de nariz escorrendo de hoje, os homens porcos, imundos (na melhor das hipóteses), covardes e gananciosos homens, os velhos e rudes que acumularam durante toda a vida apenas conflitos e maus hábitos. As projeções sociais do espírito feminino mais cedo juntaram imagens de homens heróicos e as impuseram como o padrão. Quando este trabalho foi enfraquecido em um segmento do logos social pelo qual as personalidades femininas eram responsáveis ​​na era do patriarcado, então tudo colapsou. Somente seres estranhos e desordenados de orientações não-tradicionais permanecem - aberrações e esquisitões. O patriarcado era um produto da extrapolação da fantasia feminina.

Então quem o Animus será sem os homens?

Esta será a figura da liberação final da energia feminina, o herói solar, o "super-homem" - inocente como uma criança, cruel como um homem e sábio como um ancião. O diálogo feminino com o inconsciente produzirá a última emissão de energia erótica em uma figura voadora e dourada. Será efêmera e se dissolverá rapidamente, uma vez que, dada a ausência de ordem social (na superfície da qual o resíduo restante irá nadar em algo similar da política rodoviária, que sobreviverá facilmente ao desaparecimento do sentido e da lógica nas coisas), o Animus terá nada através do que garantir sua vontade de poder. Este será o raio de luz do amanhecer absoluto do "fascismo" metafísico, que se mostrará no horizonte apenas para se fundir na iminente noite em um instante.

No entanto, quem sabe, talvez até a contemplação momentânea do nascimento e do desaparecimento de Animus seja um espetáculo que, de forma ilusória, satisfará as grandes expectativas femininas.

O Sujeito Radical

Ainda outra figura terá seu lugar na (anti) utopia pós-crise. Dessa vez, essa personagem não é do arsenal da topologia junguiana, mas das intuições pós-filosóficas da "nova metafísica". Este é o Sujeito Radical descrito esquematicamente em meus livros A Filosofia do Tradicionalismo, A Pós Filosofia e O Sujeito Radical e o seu Duplo. Embora não seja uma figura junguiana, ela pode, no entanto, ser descrita nos termos do "Apocalipse Jungiano".

O Sujeito Radical é a realização da explosão dos arquétipos do inconsciente coletivo à luz do dia junto a um modelo diferente do logos social e cultural que dominou no ciclo da civilização humana conhecida. O Sujeito Radical é o logos alternativo (ou, mais precisamente, o logos em potencialidade portando um número de logoi) que partilha com o logos conhecido até então a sua natureza diurna, mas que pertence ao fundamento inconsciente e mitológico coletivos da sociedade (cultura, civilização) de uma maneira diferente. Em comparação com isso, a gênese do logos anterior (velho) a partir do mythos era questionável em seu próprio início, se não fatalmente equivocada.

Do ponto de vista filosófico, a teoria mais próxima deste modelo é a "Ereignis" de Heidegger, que ele desenvolveu de 1936 a 1944.

O Sujeito Radical é capaz de individuação sob qualquer circunstância na medida em que opere com o logos não como atualidade, mas com o logos como potencialidade, isto é, na esfera que se situa entre o inconsciente coletivo (mito) e sua concentração na atualidade do logos - antes que essa concentração se torne irreversível.

Este é o logos dissolvido, o proto-logos. O Sujeito Radical é a realização do Selbst na sua forma incondicional livre de todas as circunstâncias, e a psique não participa dessa realização, pois estamos lidando (de acordo com Jung e Otto) com os horizontes numinosos do espírito em pura forma além das águas psíquicas, uma espécie de "caminho seco".

A Composição Final 

O escritor Mamleev escreveu uma vez no título de uma de suas histórias: "Estamos prontos para a Segunda Vinda". Isso é certo.

Qual será a combinação dos pólos da pós-antropologia?

Teoricamente, e seguindo simetrias formais, haverá quatro pós-identidades dinâmicas que são relativamente autônomas - a sombra, o anima, o animus e o Sujeito Radical. Pode-se supor que o "diabo-sombra" tentará expandir seu campo para a extensão máxima disponível, ou seja, contra o anima, o animus e o Sujeito Radical.

Como a reduplicação do Sujeito Radical acontecerá, ou seja, o estabelecimento de seu simulacro diabólico - tentei descrever isso no meu livro O Sujeito Radical e seu Duplo no qual com "duplo" temos em mente estritamente isso que Jung se refere como a "sombra", apenas na perspectiva apocalíptica e sociológica que estamos examinando - a sombra do macrocosmo, e não a micropsicologia. Para resumir este livro em uma única frase: distinguir o Sujeito Radical do seu duplo será difícil, e nisso reside o nervo metafísico de todo o drama do mundo (o mundo foi criado à luz do telos desse discernimento final) .

A valência da relação entre a sombra e o Sujeito Radical, entre outras coisas, dará à sombra um valor metafísico, e desse resíduo inercial do logos em dispersão o transformará em uma figura "socialmente" significativa. Aqui, aliás, é bastante pertinente o modelo teológico da compreensão do diabo que, ao contrário do pragmatismo psicológico de Jung (e sua dependência dos gnósticos) forma em relação a esse personagem as proporções adequadas de reação, luta e fuga (se em tal ponto alguém ainda está "tentando decidir", e agora a mente não é simplesmente "não sua", mas desaparece completamente como fumaça).

O Animus dourado, partindo da periferia do horizonte feminino sob o brilho do fascismo absoluto (jamais do histórico) provavelmente não terá relação com Anima ou com a sombra. Para a sombra ela é inacessível, pois nela o ego feminino é liberado de si mesmo, de seu próprio pecado, de sua própria sombra. O ego feminino é a sombra. Mas o que, então, é o ego masculino? Talvez apenas um mal-entendido? Como o Sujeito Radical se relaciona com o Animus desencarnado ainda não está claro. E terá isso algum significado para ele? ...

Agora, a sombra definitivamente tenta aproveitar o Anima líquido, incluí-lo em sua estrutura, talvez pela inércia da memória. Como a física moderna sabe, mesmo as substâncias materiais têm memória. A sombra verá a simetria pós-antropológica com seu ego feminino desaparecendo no nada.

Um outro, quinto, elemento será o pano de fundo, que só pode ser descrito como o "retorno dos deuses antigos" (a fórmula de Heidegger), o surgimento do inconsciente coletivo ou do inferno em sua forma etimológica, à medida que o invisível (Hades) se torna visível (idéia, forma). Na ausência de um logos repressivo, todos os mitos se elevarão sem qualquer controle diacronico ou qualquer ordem (Ordnung). A consciência cristã também consegue compreender isso, como demanda a religião. Em um sentido moral, estritamente religioso, a tentação não deve ter poder ou força sobre o homem salvo, se o mal não assume, em algum momento, características ambíguas que formam uma escolha espiritual e moral - porque o discernimento dos espíritos é um desafio verdadeiramente heróico e um grande feito - e não se dar por garantido como uma banalidade sociocultural. Quando o mal vem sob o disfarce do mal, não é tão difícil rejeitá-lo. Quando ele vem como algo incompreensível e avassalador, de uma só vez, então tomar uma posição estrita é muito mais difícil. Tudo gira e sai do lugar, e é impossível distinguir uma coisa da outra. Este é o mal vigoroso e eficaz.

Isso acontecerá?

Necessariamente acontecerá, uma vez que, por um lado, esse cenário, em termos gerais, tem estado escrito nos textos sagrados da humanidade, enquanto, por outro lado, a sociologia moderna, os estudos culturais, a filosofia e a psicologia analítica têm em suas próprias línguas e terminologias chegado a uma visão mais ou menos parecida. Certamente acontecerá, e precisamente como foi descrito. A questão é quando exatamente?

Todo fracasso na história da civilização, todas as grandes guerras, desastres naturais, revoluções sangrentas e ciclos insanos de desenvolvimento cultural, político, social, econômico e tecnológico pode significar potencialmente o colapso do logos social, que tem claramente e já há muito alcançado a sua saturação e passou pelas principais etapas de sua jornada. O logos social já "nasceu, casou-se e morreu". Isso se tornou óbvio na época de Nietzsche. Heidegger, Spengler, e em um sentido mais amplo, a maioria dos conservadores revolucionários da Alemanha nos anos 20 e 30 viviam exclusivamente com a sensação desse fim.

A Revolução Russa cavalgou essa mesma onda, pelo menos como os poetas, os filósofos e os artistas da Idade da Prata o entendiam (e eles eram os únicos a entender isso corretamente). A proposta de que o proletariado se reconhecesse como uma identidade de classe (especialmente na década de 1920), a literatura de A. Planatov e as poesias de Klyuev, Blok e Mayakovsky já haviam antecipado o movimento pós-antropológico das energias desencarnadas e desumanizadas. A Rus-Sofia de Blok é Anima. Klyuev descreveu em detalhes a geografia do inconsciente coletivo com a minuciosidade de um zoologista ou inspetor alemão. Mayakovsky criou uma ontologia poética dos seres de classe. Platonov explicou como viver e trabalhar através das comunas luminosas, como seus heróis comem a terra (como o personagem Chevengur que chama a si mesmo "Deus"), se transformam em Dostoiévski e prejudicam violentamente e voluptueiramente a realidade de Rosa Luxemburg e da revolução mundial.

Se analisarmos mais profundamente a história, o que a Rus viveu na era do cisma e a Europa durante a Reforma pode muito bem ser atribuído à mesma categoria. O mundo terminou, o logos social se quebrou e desabou, e, por debaixo dos escombros, rastejaram as figuras gigantes do subconsciente indomado.

Não houve poucas repetições da crise atual, e a humanidade está culturalmente pronta para tal. O escárnio que chamamos de "modernidade" com suas quimeras e vazio acabará mais cedo ou mais tarde. Assim, tudo acontecerá, acontecerá em breve e acontecerá exatamente assim. Claro, não descrevemos como, porque vemos tudo como aberto e estamos nos preparando para participar.

E ainda assim existe a probabilidade de que essa bolha explosiva não seja a última (ou a quase última). Heidegger ponderou metafisicamente: "Vivemos perto do ponto da meia-noite - não, parece que ainda não - sempre o eterno 'ainda não'"...

Mas não importa quão frustradas as expectativas de um resultado rápido possam ser, isso não significa que nunca haverá um fim. Pode demorar, mas olhem ao redor. Tudo porta sinais disso. Talvez ele seja adiado mais uma vez, ele vai se dissolver, e a escória vai mais uma vez se alegrará, sentindo que desta vez é "ainda não..." Poderíamos permitir isso, mas, novamente, talvez não ele seja adiado. Mesmo que fosse, é preciso viver - já hoje - como se não fosse ser adiado. E quando viveremos verdadeiramente, fixos no resultado pós-antropológico, vivendo dentro dele mesmo e talvez antecipando seus eventos, então tudo acontecerá.



Acontecerá, ele necessariamente acontecerá.