04/10/2015

Jafe Arnold e Joaquin Flores - Tragédia e Farsa: Reconsiderando a Análise Superestrutural Marxiana de Movimentos Sociais Heterodoxos (Parte I)

por Jafe Arnold e Joaquin Flores



Utopia vs. Mito, a Poesia do Passado, e a Revolução Social - Uma Introdução Geral a esta Série

Introdução

Comecemos estabelecendo que houve três ideologias sócio-políticas da modernidade - liberalismo, comunismo e fascismo; a primeira, segunda e terceira teorias políticas, respectivamente. Novos desenvolvimentos no arranjo global de forças sócio-econômicas, ideológicas e geopolíticas em anos recentes nos forçam a examinar estas com novos olhos. Por um lado, precisamos reconhecer a herança filosófica comum de todas estas três ideologias na modernidade, e assim revelar as instâncias nas quais elas conscientemente ou inconscientemente se coadunam, enquanto pelo outro lado delinear por entre seus respectivos entendimentos de seus papeis como ideologias. Em particular, o objetivo desta série é reconciliar o esquema analítico marxiano com as características estruturais e superestruturais de novos e sincréticos movimentos sócio-políticos, em sua forma puramente estética, bem como em seus aspectos ideológicos mais profundos.

O ponto de partida de nossa investigação é o reconhecimento de que vivemos em um tempo extremamente ideológico, e ainda assim parece para muitos que não vivemos. Que muitos no Ocidente creiam que vivemos em um período "pós-ideológico" é, na verdade, testamento da saturação total da ideologia liberal. Desde a vitória do Ocidente liberal sobre a União Soviética e a proclamação liberal do "fim da história" (nas palavras de F. Fukuyama), o liberalismo se tornou tão entranhado em cada faceta da vida ao ponto de ser indistinguível da própria vida quotidiana em si mesma. Enquanto tal, ela provou ser a ideologia totalitária mais eficiente até então criada pela humanidade.

Liberalismo & Marxismo

O liberalismo apela a nossos instintos individuais inatos, mas o faz de tal maneira a guerrear contra nossos instintos coletivos igualmente inatos. Ambos esses instintos inatos - o individual e o coletivo - são partes integrais da experiência humana. Uma instância destacável da crua atomização imposta pelo liberalismo pode ser vista no fato de que o sexo parece ser um foco particular da ideologia liberal contemporânea, impulsionado de forma padrão como uma questão divisiva entre grupos político-midiáticos liberal-progressistas e liberal-conservadores [1]. Formular uma crítica ampla do liberalismo como a ideologia do capitalismo significa reexaminar como compreendemos movimentos anticapitalistas radicais hoje. Isso significa, em primeiro lugar, ousar reconsiderar e distinguir a base e a superestrutura em teorias marxianas sobre movimentos sociais heterodoxos (e aparentemente não-esquerdistas). Sobre este fundamento podemos proceder com um entendimento renovado com o qual analisar e então transcender (em teoria) questões particularmente divisivas.

Estas questões divisivas, de fato, não são fundamentais per se, mas são questões superestruturais que existem principalmente no reino das armadilhas discursivas; os tipos de formas de linguagem usados que nos dirigem a associar estas com outros reinos distintos de pensamento e atividade. Estes são modos e reinos que até então foram considerados pelos marxistas como hostis aos interesses históricos e materiais de classe do proletariado; eles estão associados com políticas de reação, pré-modernidade, e/ou com forças de classe da burguesia ou da pequena-burguesia em um modo de crise. Outras questões são étnicas, de gênero e de sexo, que dividem as forças do proletariado. A ossificação de uma cultura "globalista" politicamente correta neoliberal que as cercam serve para justificar o "imperialismo dos direitos humanos": estes representam exemplos cruciais da permuta entre teorias "antiliberais" (formalmente, elas não estão abertas para debate) pelo próprio paradigma liberal da modernidade.

Os elementos utópicos no liberalismo encontraram expressão em seu ramo de "progressismo", e os marxistas, tal como os socialistas utópicos antes, encontraram um chão comum com os liberais. O ramo futurista do fascismo também apelava a esse progressismo, e republicanos radicais, anarquistas, sindicalistas, bem como republicanos vermelhos na Itália estiveram entre os fundadores dessa terceira teoria política no plano italiano. O esquema progressista, que permitiu e engendrou a fertilização cruzada entre as três teorias políticas, as situa todas elas como teorias políticas modernas. Porém, o núcleo para teorias políticas futuras existe na segunda e terceira - ambas as quais propõem a questão do que seguirá a ordem capitalista (liberal) moderna.

Assim, há um erro inerente em pensar as três ideologias da modernidade em formas estáticas; pensá-las como estruturas que se situam sozinhas. É, então, errôneo contrastá-las com ideologias "sincréticas", ou considerar a terceira teoria política como distintamente sincrética, e a primeira e segunda não. Todas as três teorias políticas da modernidade influenciaram umas as outras; cada uma foi criada a partir de ideias não apenas daqueles que as precederam, mas que concretamente emergiram do mundo material realmente existente e de tudo que foi herdado dele. Cada teoria política não emergiu sob uma forma completa, e assim, por exemplo, o liberalismo hoje tem traços tanto do comunismo (i.e., marxismo) e do fascismo. Similarmente, o marxismo nasceu não apenas do liberalismo e de sua contemplação do feudalismo e da pré-modernidade, mas estava interagindo simultaneamente com; subsumindo aqui e rejeitando ali, as ideias do liberalismo radical, do nacionalismo, do existencialismo e do anarquismo, que são, não por acidente, todos juntos também as bases do fascismo.

Uma chave dada por Marx: O XVIII de Brumário

Para muitos que compreendem a trajetória do desenvolvimento histórico através de uma lente marxiana, poucas coisas parecem mais contraditórias em relação às próprias visões de Marx do que sua "correção" de Hegel nas primeiras linhas do Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. O ensaio em si permanece como uma das melhores descrições de Marx de sua teoria do Estado capitalista. A análise dos marxianos é intelectualmente honesta quando ela opera com uma compreensão das condições objetivas e subjetivas nas quais a transformação histórica se dá, segundo o esquema analístico do materialismo histórico ou dialético. Ademais, ela exibe uma distinta fidelidade à ciência proposta quando olha objetivamente e sem viés emotivo para as formas superestruturais que tais transformações históricas assumem.

O problema identificável, então, ao se aplicar a mesma análise marxiana ao presente, isto é, quando ela se apoia nas dicas superestruturais à disposição e cede à pressão da cultura de ativismo, ela pode falhar particularmente quando observa movimentos sociais contemporâneos, isto é, do início do século XXI na era pós-moderna. Uma chave para compreender este problema, como uma introdução adequada a nossa investigação, pode estar em uma leitura revisada do primeiro capítulo do XVIII de Brumário.

Assim, será importante para nós examinar não apenas como esta correção é interpretada equivocadamente pelos marxistas, mas também talvez onde o próprio Marx poderia ser corrigido - ou talvez melhor, alinhado com sua própria ciência proposta. Isto levantará a questão do que isso significa no contexto do reino superestrutural da estética, cultura, palavras (ou armadilhas discursivas), ideais e símbolos. Se Marx parece se contradizer, pode ser importante virá-lo de cabeça para cima.

A confusão entre forma e substância não é apenas um problema teórico, mas um que possui impacto extraordinário sobre o presente: se socialistas radicais, anarquistas e comunistas estão hoje confiando em pistas superestruturais para determinar a identidade de seus "inimigos de classe", isto pode ser um equívoco trágico, e em retrospecto, uma farsa. Conforme começamos a sofrer com a "overdose de informação" da era da internet, e onde déficits de atenção batem record, na verdade é difícil não ser econômico quando se procura por certas pistas: comunistas hasteiam bandeiras vermelhas, anarquistas bandeiras negras, enquanto socialistas mimetizam liberais se privando de simbolismos abertos. Ao contrário, os socialistas usam linguagem e sintaxe "liberal" e "progressista" para atingir qualquer um à esquerda do centro. Todos os três, porém, na melhor das hipóteses ignoram, e na pior das hipóteses vilificam aqueles na centro-direita e mais além.

Marx vs. os marxistas: Subsunção total de todas as classes em um proletariado

O problema com a marginalização ou vilificação de pessoas na "centro-direita e mais além" é, obviamente, que em termos de processos eleitorais é efetivamente impossível ter sucesso neste terreno sem ideias "de centro-direita e mais além" apelando a membros do proletariado. É simplório demais varrer estas sob o tapete da "falsa consciência" sem colocar seriamente em questão o potencial para (e a realidade da) agência de classe em geral. Em conexão com isto está um problema na maneira pela qual grupos comunistas contemporâneos tem ignorado a teoria marxista real e simplificado sua definição de "proletário".

Ao contrário, não apenas ao olhar para a sociedade civil, mas também na teoria marxista, nós devemos compreender que sob condições do capitalismo tardio, i.e., modernidade tardia, que o desenvolvimento capitalista proletarizou todas as outras classes (pequeno-burguesa, etc.) através de várias maneiras. Todas as classes prévias, que existem hoje sob forma proletária, foram subsumidas pelo capital e proletarizadas; todas estão envolvidas no processo crítico de valorização. Por definição, portanto, todas estão envolvidas na produção de mais-valia. Todos os labores estão em análise final orientados para o acúmulo de capital; e todos estão em análise final alienados do trabalhador e acumulados pelo capitalista, através do ciclo de produção, dos produtos de dito labor.

Os mecanismos da acumulação de capital, no contexto do capitalismo tardio, não são apenas a apropriação de mais-valia sob a forma de salários na típica relação empregador-empregado; mas, ao invés, todas as relações de produção ou relações sociais estão engendradas para a acumulação de capital pelos capitalistas financeiros. Modos pré-capitalistas (aluguéis, taxas), capitalistas (salários), e capitalistas tardios (empréstimo/especulação/finanças) de apropriação de capital, são todos utilizados no capitalismo tardio como métodos de acumulação de capital.

Assim, classes que aparecem como gerenciais, pequeno-burguesas, lumpen, administrativas, etc. foram proletarizadas. Dessa forma suas lutas, quando dirigidas à ordem estabelecida, independentemente da poesia, (slogans, simbolismo, gritos de guerra, imagética e estandartes), são geralmente proletárias em substância ainda que não de forma aparente.

Assim no que concerne atalhos interpretativos, úteis que seja, eles possuem duras limitações por se referirem a interpretações majoritariamente desatualizadas de pistas estéticas e superestruturais em geral. Este é especialmente o caso conforme vários movimentos sociais emergindo em oposição ao capitalismo derivam de uma mistura aparentemente caótica ou dissonante de vários radicalismos. Estes até mesmo incluem aqueles que parecem e sentem como se originando da extrema-direita fascista, e podem de fato originar daí. Como exploraremos nesta série, estes são muitas vezes movimentos objetivamente proletários e anticapitalistas que estão envolvidos na estética e referências históricas do fascismo e de vários neofascismos na Europa, e nos EUA geralmente assumem a forma do constitucionalismo e do libertarianismo também.

Se, de fato, estes grupos radicalizados de "extrema-direita" estivessem de fato fazendo o trabalho da classe governante, mobilizando para esmagar iniciativas de poder operário em nome do Estado, da Igreja, e dos interesses de classe da pequena-burguesia (e das forças tradicionais da reação em geral), então a classificação marxista novecentista destes grupos como "fascistas" poderia ser de fato apta: nossos "atalhos" teriam servido.

De fato e similarmente também seria uma tragédia de grupos de combate "de esquerda" tais como os Antifa estivessem em verdade atacando outros movimentos proletários opostos ao capitalismo, que só calham de parecer permutações pequeno-burguesas reacionárias de poder classista.

Ao mesmo tempo não podemos definir diretamente a contra-mobilização contra grupos comunistas por grupos "de extrema-direita" como contra-mobilizações contra o proletariado enquanto classe. Objetivamente, estas são lutas relativamente pequenas entre grupos ideológicos distintos pertencentes ao proletariado (i.e., esquerda vs. direita), e mimetizam as lutas entre seitas religiosas, e não representam os interesses de uma classe contra outra classe. Auto-referências e simbolismo "comunista" vs. "fascista" são abstrações nocionais e de modo geral não se ligam materialmente a forças de classe proletária vs. pequeno-burguesa, respetivamente, ainda que remetam a elas abstratamente, i.e., no mundo das ideias.

Certamente, "dividir para conquistar" tem sido uma tática eficaz para a classe governante manter seu mando classista. Isso pode se estender muito além do que era previamente compreendido. E coloca em cheque o modo pelo qual compreendemos e interpretamos a suposta prole de vários movimentos sociais do século XX.

O Estado capitalista e seu aparato super-armado de poder estatal, sua burocracia complexa e grandes recursos, se apresenta como uma monstruosidade aparentemente inconquistável. Grupos marxistas revolucionários aparentemente empalidecem em comparação em termos de sua capacidade de projetar poder. Significativamente menos poderosos são os supramencionados movimentos  e grupos anticapitalistas não-marxistas, muitos nem mesmo se identificando com a esquerda, e em sua maioria assumindo uma perspectiva decididamente anticomunista em termos de ideologia nominal. Estes grupos fazem excelentes alvos substitutos para grupos revolucionários marxistas e anarquistas; é possível atacá-los nas ruas e espaços virtuais. Vitórias aqui servem para satisfazer a necessidade de ter vitórias, mas podem na verdade trabalhar contra os objetivos verdadeiros da luta contra o capitalismo.

Movimentos sociais sincréticos na Eurásia já estão superando o problema para o qual estamos olhando, e portanto alguns desses exemplos serão discutidos nesta série. Outros exemplos incluem o socialismo pan-árabe e pan-sírio (tal como o Ba-athismo ou o PSNS), bem como nacionalismos revolucionários na América Latina, a Teologia da Libertação, grupos revolucionários na área novorrussa da ex-Ucrânia, e outros. Eles tem influenciado nossas opiniões também, mas mais concretamente demonstram que soluções podem ser deduzidas e principalmente são mais do que "prova conceitual" de que tais empreendimentos podem ser realizados com grau elevado de eficácia.



Retornando a Marx em O Dezoito de Brumário

Marx escreve:

"Hegel comenta em algum lugar que todos os grandes fatos e personagens histórico-mundiais aparecem, por assim dizer, duas vezes. Ele se esquece de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa [...] E exatamente enquanto eles parecem estar ocupados com revolucionar a si próprios e as coisas, criando algo que não existia antes, precisamente em tais épocas de crise revolucionária eles conjuram ansiosamente os espíritos do passado para seu serviço, pegando emprestados deles nomes, slogans de batalha e roupas de modo a apresentar esta nova cena na história mundial em um disfarce honrado pelo tempo e com linguagem emprestada. Assim Lutero trajou a máscara do Apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente com o disfarce da República Romana e do Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer melhor do que parodiar, primeiro 1789, então a tradição revolucionária de 1793-95. De maneira similar, o iniciante que aprendem um novo idioma sempre o traduz de volta para sua língua materna, mas ele assimila o espírito do novo idioma e se expressa livremente nele apenas quando ele transita nele sem rememorar o antigo e quando ele esquece a língua nativa".

"Quando pensamos sobre esta conjuração dos mortos da história mundial, uma diferença saliente se revela. Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint Just, Napoleão, os heróis bem como os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, realizaram a tarefa de seu tempo - aquela de desagrilhoar e estabelecer a sociedade burguesa moderna - em trajes romanos e frases romanas. A primeira destruiu a fundação feudal e cortou as cabeças feudais que haviam crescido nela. A outra criou dentro da França as únicas condições sob as quais a livre competição poderia se desenvolver, alocaram terra adequadamente utilizada, e a poder produtivo desimpedido da nação empregado; e para além das fronteiras francesas varreu instituições feudais por todo lado, para fornecer, na medida do necessário, à sociedade burguesa na França um ambiente atualizado e adequado no continente europeu. Uma vez que a nova formação social foi estabelecida, os colossos antediluvianos desapareceram e com eles o romanismo ressuscitado - os Brutus, os Gracos, os publícolas, os tribunos, os senadores, e o próprio César. A sociedade burguesa em sua realidade sóbria engendrou seus próprios intérpretes e porta-vozes autênticos nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros líderes militares se sentavam por trás de mesas de escritório e o cabeça-de-porco Luís XVIII era seu chefe político. Inteiramente absorvida na produção de riqueza e na competição pacífica, ela não mais se lembrava dos fantasmas do período romano que haviam velado em seu berço".

"Mas ainda sendo a sociedade burguesa tão anti-heroica, ela não obstante necessitava de heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil, e guerras nacionais para gerar a si mesma. E nas austeras tradições clássicas da República Romana os gladiadores burgueses encontraram os ideais e as formas de arte, as auto-enganações, de que precisavam para ocultar de si mesmos o conteúdo burguesamente limitado de suas lutas e para manter sua paixão no plano superior da grande tragédia histórica" [2].

Por outro lado, esta passagem crucial é um dos trabalhos influentes de Marx na análise da experiência revolucionária e na dedução de conclusões teóricas; Marx afirma que "os homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem como lhes apraz; eles não a fazem sob circunstâncias selecionadas por si mesmos, mas sob circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas desde o passado" [3].

Como exemplos, nós vemos que Marx reconta o retorno da Reforma Luterana ao Apóstolo Paulo, o apelo de Cromwell e dos ingleses ao Velho Testamento, e a estética romana da Revolução Francesa como casos nos quais transformações revolucionárias buscaram sua estética e apresentação no passado de modo a apresentar um tipo de legitimidade histórica e um senso de luta historicamente redimida contra a ordem contemporânea.

Hipótese vs. Experiência: A Teoria deve refletir a realidade

Ainda assim, em flagrante contradição a este reconhecimento presente de tão inegável realidade, Marx prossegue sugerindo que a futura revolução social "não pode tomar sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Ela não pode começar consigo mesma antes que tenha se livrado de toda superstição do passado. As antigas revoluções demandaram rememorações da história mundial passada para suavizar seu próprio conteúdo" [4].

Por que Marx olha para um uso eficaz e provado da poesia do passado apenas para defender que a futura revolução social só pode tomar sua poesia do futuro? Marx propõe: "A revolução do século XIX deve permitir que os mortos enterrem seus mortos para chegar a seu próprio conteúdo" [5].

Daí o significado da fórmula "primeiro como tragédia, então como farsa": a apropriação do passado e de formas existentes é uma necessidade circunstancial tragicamente imposta, e uma repetição subsequente dela representa pouco mais que uma paródia falida, castrada, reacionária. Marx, apesar de reconhecer a importância do disfarce apostólico da Reforma ou das pretensões romanas da Revolução Francesa, chega ao ponto de denunciar a influência da "tradição de gerações mortas", como um "pesadelo no cérebro dos vivos" [6].

Ainda que tal avaliação feita por Marx possa estar de fato restrita a uma precognição relevante em referência ao golpe francês de 1851, a conclusão de que os "nomes, slogans de batalha, e trajes" tirados do passado em meio a luta revolucionária constituem inerentemente uma farsa reacionária e auto-abortiva é de importância séria e de grandes consequências. Nós propomos que ela é um equívoco.

E este é um equívoco, de fato uma contradição confusa na discussão de Marx sobre a relação entre a superestrutura (a "poesia") e a base (classe objetiva e forças econômicas), que ou levou a repercussões profundamente negativas nas análises produzidas por marxistas, ou foi efetivamente refutada por experiências revolucionárias passadas e contemporâneas.

Não apenas foi a "poesia do passado" eficaz em seu tempo, nós não podemos, em última análise, conceber uma maneira pela qual ela seja evitável. Ela foi realmente necessária. A revolução de 1917 não remetia apenas a sua própria promessa e futuro utópicos. Ela teve que se fortificar na mitologia de 1871, 1848 e 1792-94. E não só isso, mas também toda a "história todas as sociedades existentes até então é a história da luta de classes" (Manifesto Comunista, 1848). Não se pode julgar estas positivamente sem valorizá-las, e não se pode depositar valor na história sem a mitificar.

De fato, tornou-se excessivamente comum para marxistas resumir a presença de imagética, simpatias ou tonalidades antigas, medievais, pré-modernas ou mesmo burguesas primitivas como indicativas de uma natureza pró-capitalista, reacionária e contrarrevolucionária. Em realidade, eles estão equivocadamente denunciando movimentos que possuem o potencial para produzir mudanças sociais genuínas e ser uma parte importante da transformação revolucionária.

Nossa Proposta

Nós propomos compreender tais movimentos no sentido marxiano, ao contrário, como muitas vezes "revolucionários" mesmo quando trajando as roupagens do mito, mesmo quando portando a máscara da reação.

Mas perguntamos isto: por que deve ser o caso de que a revolução deve "deixar os mortos enterrar seus mortos"? Este foi de fato o caso, e é provável que seja o caso? A isto, nossa resposta é "Não".

Seriam os movimentos comunistas, anarquistas e socialistas hoje aproximadamente os mesmos de 150 anos atrás? Seriam os movimentos fascistas e de "ultra-direita" hoje aproximadamente os mesmos de 70 ou 100 anos atrás? Para ambas, nossa resposta é novamente "Não".

Estes grupos e movimentos passaram por tremendas mudanças, um século se passou com a estrutura agindo sobre a superestrutura e a superestrutura agindo sobre a estrutura, produzindo uma cadeia irreversível de fenômenos atrás de si. As perspectivas de Marx como expressas no Dezoito de Brumário já foram contraditas na prática. Porém, ao mesmo tempo, há elementos de verdade também: há diferentes perspectivas do passado, mas as pessoas podem ser unificadas por uma ideia comum sobre que tipo de futuro funcionaria. Ainda assim, nós vemos isso não como uma razão para condenar aqueles que usam o poder do mito em sua agitação e identidade, mas sim como razão para que aqueles que o compreendem não confundir sua poesia subjetiva com sua função objetiva.

Tal como o uso subjetivo do simbolismo e da linguagem de um partido ostensivamente comunista não o torna objetivamente comunista no sentido revolucionário e proletário do termo (podemos olhar para qualquer número de partidos eurocomunistas, por exemplo), a poesia e mito do fascismo não torna os grupos e movimentos que as usam objetivamente fascistas no sentido burguês reacionário do termo.

Também é importante relembrar: o movimento comunista não apenas no século XX, mas mesmo na época de Marx, também escreveu seus versos sobre o passado, sua própria poesia sobre a Revolução Francesa, Grachus Babeuf, August Blanqui, a Liga do Justo, a Conspiração dos Iguais, as Comunas, e daí em diante. Conforme eventos avançaram no tempo, este versos se tornaram cada vez mais distantes de nós. Os comunistas agora se referem ao passado e traçam sua origem "moderna" a uma época quase dois séculos atrás. Pode um movimento comunista não ter uma história? É possível que ele não lembre e mitifique a si próprio? Seriam as bandeiras vermelhas e negras hoje alusões ao grande ano de 1917 similares à conjuração dos "espíritos do passado a seu serviço, tomando emprestados nomes, slogans de batalha, e trajes de modo a apresentar esta nova cena na história mundial em um disfarce honrado pelo tempo e com linguagem emprestada?" Nós acreditamos que sim.

Olhar abertamente para estas questões estará entre as tarefas desta série. Nós convidamos nossos leitores a se unirem a nós conforme exploramos estas questões relevantes. Isso envolverá uma dissecação da complexa relação entre estrutura e superestrutura, que é uma que foi também abordada por modernistas de meados do século (os chamados pós-modernistas) e muito mais.

Isso demandará um olhar para a cultura, a evolução da cultura e subcultura jovem, e para movimentos sócio-políticos sincréticos e antiliberais de hoje. Estes traçam suas origens primariamente à segunda metade do século XX.

Algumas dessas coisas demandarão que olhemos para as concepções superestruturais de poesia; a poesia do passado vs. a poesia do futuro. É claro, poesia sobre o passado não é do passado, mas do presente - ela só é sobre o passado. Similarmente, a poesia do futuro não é do futuro, mas do presente. E, em ambos os casos, elas remetem ao presente - está para nós no presente, e no presente tudo pode ser feito. Neste sentido, estas - a poesia do passado e a do futuro - são ambas narrativas contemporâneas.

Se cumprimos nossa missão, levantaremos mais perguntas do que seremos capazes de responder, e esperançosamente provocaremos uma razão ainda melhor para desenvolver esta série ainda mais. Este é um tema vasto demais para qualquer quadro singular, e um que só podemos esperar rascunhar com alguns detalhes para o leitor.

**********

[1] Sexo e sexualidade, que de início nos parecem algo tão pessoal, são como linguagens na medida em que formam o tecido conectivo entre o indivíduo e o coletivo. Não nos deve surpreender, então, que o liberalismo foque hoje tanto de seu trabalho ideológico e intelectual na área de sexualidade e gênero. O liberalismo é atomizador, e induz um tipo de esquizofrenia social ao promover uma ideia social pudica de que nós somos todos consumidores privados e individuais. Ele é até mesmo pudico em sua comercialização exagerada da sexualidade. Ele produz um indivíduo "padrão", subsexualizado através da supersexualização, solitário em um mar de "pessoas demais"; desvalorizado e apto para consumo e produção dentro do ciclo capitalista; cercado por abundância e ao mesmo tempo alienado do produto de seu trabalho. O liberalismo é a ideologia do capitalismo na medida em que promove tudo isso.

[2] https://www.marxists.org/archive/marx/works/1852/18th-brumaire/ch01.htm#2

[3] ibid

[4] ibid

[5] ibid

[6] ibid